Publicado em 12/03/2020 - geral - Da Redação
O juiz
aplicou o estabelecido no parágrafo 3º do artigo 98 da Lei nº 8.112/90, análogo
ao caso.
A Justiça
do Trabalho de Minas Gerais determinou que uma empresa pública que administra
hospitais universitários federais, vinculada ao Ministério da Educação (MEC),
reduza a jornada de trabalho de um técnico de enfermagem pela metade, sem
prejuízo de salário e compensação de horas, enquanto durar o tratamento de dois
filhos menores portadores de TEA - Transtorno do Espectro Autista, patologia
que se enquadra no conceito de pessoa com deficiência. A decisão é do juiz
Cláudio Roberto Carneiro Costa, titular da 20ª Vara do Trabalho de Belo
Horizonte.
A empresa,
criada sob a forma empresarial pública de direito privado, sustentou que o
autor já se submetia a jornada diferenciada, até porque dissídio coletivo teria
previsto afastamento por até dois meios períodos por mês. Também insistiu na
possibilidade de o trabalhador dividir tarefas com a esposa e afirmou que a
redução pretendida acarretaria danos, inclusive aos usuários do SUS. Ainda
conforme ponderou, o empregado também trabalha na Prefeitura de Belo Horizonte,
com carga horária de 20 horas semanais, e a condição almejada seria exclusiva
dos servidores públicos federais. Por se tratar de contrato de trabalho regido
pela CLT, ele não teria direito à redução de jornada.
No
entanto, o juiz não acatou esses argumentos. Inicialmente, destacou que a
questão deve se ater ao vínculo empregatício existente entre as partes, não
podendo a reclamada se esquivar invocando outra atividade prestada pelo
trabalhador em outro órgão público. De acordo com o magistrado, as garantias
constitucionais e legais asseguradas ao empregado público devem se sobrepor aos
limites fáticos da rotina de trabalho da reclamada.
E, na
visão do julgador, o autor e sua esposa devem acompanhar os filhos menores,
diante da gravidade da situação vivenciada. “Os filhos apresentam uma sintonia
com o pai, de modo que sua presença nos tratamentos favorece o desenvolvimento
dos menores”, ponderou. O fato de a CLT não prever regra específica a respeito
das garantias concedidas nas relações de trabalho aos empregados que são pais
de crianças com necessidades especiais não prejudicou o deferimento do pedido.
“O próprio ordenamento jurídico e as regras de interpretação conforme a
Constituição, analogia e princípios fundamentais oferecem soluções para o caso
de lacuna normativa”, considerou o julgador.
Ele se referiu
à Lei nº 8.112/1990, que trata do regime jurídico dos servidores públicos.
Conforme explicou, os parágrafos 2º e 3º do artigo 98, com redação alterada
pelas Leis nºs 9.527/97 e 13.370/16, preveem a concessão de horário especial ao
servidor que tenha cônjuge, filho ou dependente com deficiência.
A decisão
frisou que o artigo 5º, inciso XXXV, da Constituição consagra o princípio da
inafastabilidade da jurisdição, impedindo que o juiz se furte ao julgamento
pela simples omissão da lei. Assim, mesmo em razão da ausência de norma para um
caso específico, não há impedimento para aplicação de norma legal estabelecida
para uma situação semelhante e análoga. A utilização da analogia e dos
princípios gerais do direito no julgamento é expressamente autorizada pelo
artigo 8º da CLT.
Sob o
aspecto constitucional, o juiz pontuou que são direitos sociais garantidos pelo
artigo 6º da Constituição a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a
moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à
maternidade e à infância, a assistência aos desamparados. Assim, é dever da
família, da sociedade e do estado assegurar à criança e ao adolescente o
direito à vida, à saúde, à alimentação e à convivência familiar, nos termos do
artigo 227 da Constituição da República.
Nesse
contexto, o julgador observou que o direito à saúde garante que criança e
adolescente devem ser beneficiados com todas as medidas possíveis e necessárias
para a preservação da vida, de modo a propiciar meios eficazes de tornar menos
dolorosas as sequelas físicas e mentais daqueles que sofrem de problemas
crônicos sem possibilidade de cura.
A decisão
mencionou também a Convenção sobre os Direitos da Criança, ratificada pelo
Brasil em 24/9/90 e promulgada pelo Decreto nº 99.710 de 21/11/90. O artigo 3º
prevê que todas as ações relativas às crianças, levadas a efeito por
instituições públicas ou privadas de bem-estar social, tribunais, autoridades
administrativas ou órgãos legislativos, devem considerar, primordialmente, o
interesse maior da criança.
Com
relação ao valor social da livre iniciativa consagrado no ordenamento jurídico,
o juiz se valeu da técnica da ponderação de princípios no caso concreto. Para
ele, não há dúvidas de que, na situação examinada, o direito fundamental à proteção,
à saúde e ao bem-estar social da criança portadora de necessidades especiais
deve prevalecer em sobreposição à livre iniciativa e à livre concorrência. Da
interpretação do texto legal do parágrafo 3º do artigo 98 da Lei 8.112/90, à
luz dos princípios constitucionais e direitos fundamentais da criança e do
adolescente, concluiu sobressair o direito do autor à jornada reduzida.
Explicou que a mens legis, ou seja, o espírito da lei, foi a proteção jurídica
da criança e do adolescente portador de necessidades especiais, tendo em vista
que é interesse público o desenvolvimento saudável e integral de todo o
indivíduo, de modo a assegurar a vida digna nas diversas dimensões sociais.
O juiz
repudiou a tese de que o filho de trabalhador que não se enquadra no espectro
da Lei nº 8.112/90 não teria as mesmas garantias asseguradas pelo artigo 98
desse diploma legal diante da mesma situação fática. Para ele, isso implicaria
tratamento discriminatório, o que também é vedado pela Constituição brasileira.
“O
Judiciário não pode promover a desigualdade e permitir que uma criança tenha
assistência especial e outra que apresente as mesmas condições de saúde não se
beneficie da mesma assistência por ausência de regramento legal quando existe
regramento normativo que deve ser interpretado à luz dos direitos
fundamentais”, asseverou, acrescentando que a isonomia consiste em tratar os
desiguais na medida de sua diferença, de forma a promover a igualdade, o que
justifica o tratamento especial conferido pela lei aos genitores de crianças
com deficiência.
“É dever
de toda sociedade garantir a proteção jurídica da criança e do adolescente
portador de necessidades especiais”, registrou ainda. No entender do
magistrado, a empregadora, ente da administração pública indireta, não pode se
furtar em conceder a redução de jornada estabelecida no parágrafo 3º do artigo
98 da Lei nº 8.112/90, cuja aplicação analógica ao caso entende se impor.
Houve
recurso, mas o TRT de Minas manteve a decisão.
Processo PJe: 0010462-83.2019.5.03.0020 — Sentença em 2/9/2019
ASCOM