Publicado em 10/09/2018 - cesar-vanucci - Da Redação
“Uma tragédia anunciada!” (Walter Neves, antropólogo)
Na roda do papo matinal na feira, a Almerinda do sacolão traduz a sensação do desalento popular reinante: “Tá danado, gente boa. Tá meio demais da conta, vocês não acham?” O Elesbão churrasqueiro é o primeiro a concordar. Com seu vozeirão de inconfundível sotaque baiano aduz: “Tem toda razão. É uma montoeira de coisa desagradável junta. Tudo pipocando conjuntamente!”
Na espichada da conversa, componentes do grupo,
feirantes e fregueses, vão botando pra fora referências desconcertantes, mais
do que isso, desagradáveis, das vivências do povão no dia a dia. Jorram
manifestações. Os inesgotáveis escândalos com a grana pública. O notório,
azucrinante, despreparo de boa parte dos aspirantes a cargos importantes nas
eleições que se avizinham. A estagnação econômica, despropositada, insuportável,
quando se tem sob mira as prodigiosas potencialidades oferecidas pelo país mais
bem aquinhoado deste planeta azul na partilha de recursos naturais em condições
de produzir riqueza social em proveito de toda a humanidade. A impactante
inoperância do governo mais impopular da história republicana. A multidão
incalculável de desempregados e as legiões de patrícios forçados a fazer “bicos”
para sobreviver. Além disso, a acumulação assustadora, em tudo quanto é canto,
de obras inacabadas importantes, de projetos fundamentais nos setores da
infraestrutura que não saem do papel. Tudo isso conspirando estrondosamente
contra a necessária, urgente e inadiável retomada do desenvolvimento. Os
desestímulos e desencorajamentos às ações de empreendedores capacitados, gente
ansiosa pelo ingresso na cena política de uma liderança nacional dotada de
carisma, popularidade e poder de iniciativa para galvanizar as atenções da
Nação inteira no sentido da invasão do futuro. A progressiva e delituosa
desnacionalização de ativos valiosos do patrimônio nacional.
Mais ainda: a violência urbana solta e as diligências
oficiais, de inocultável incompetência, volta e meia trombeteadas para se
“combater” as organizações criminosas; a exorbitância nos gastos públicos, a
começar pelos altíssimos salários e respectivos penduricalhos que compõem os
holerites do exército de agentes públicos remunerados acima do teto fixado pela
Constituição; as incongruências detectadas com constância, em deliberações
legislativas e judiciais.
No desfile das situações cotidianas tormentosas
despejadas na conversa solta de rua encaixou-se, também, a recente e estranha manipulação
das redes sociais, com a propagação aos quatro ventos de uma “nova greve dos
caminhoneiros”. O anúncio, de suspeitosa procedência, provocou mais uma alucinante
corrida aos postos. E, na sequência, desprotegidos consumidores viram-se “agraciados” com novas e significativas
majorações nos preços da gasolina, do álcool etecetera e tal...
Dona Almerinda do sacolão tem razão. “Tá danado, meio
demais da conta”. Já não transbordassem motivos para as aflições da sociedade,
com essa avalancha de episódios geradores de assombro e indignação em doses
mastodônticas, eis que o horizonte se vê, inesperadamente toldado por essa
estocada brutal do destino, reduzindo fatalisticamente a cinzas um pedaço
precioso de nossa história É oportuno anotar o que diz o arqueólogo e
antropólogo Walter Neves, considerado o “pai de Luzia” – o fóssil humano mais
antigo já encontrado em escavações pré-históricas das Américas, localizado em
Lagoa Santa, Minas Gerais, com idade provável de 12 mil anos, uma das relíquias
perdidas no incêndio do Museu Nacional localizado na Quinta da Boa Vista, Rio
de Janeiro. Sua reação é de molde a deixar estarrecidas – “ juntas,
conjuntamente” como diria o Elesbão do churrasco - todas as estátuas de pedra-sabão
esculpidas por Aleijadinho existentes no museu ao ar livre em Congonhas do
Campo: “Uma tragédia anunciada. O poder público abandonou completamente o Museu
há décadas.”
A constatação, aliás, é de que não se trata apenas de uma
tragédia para o Brasil. No entender dos especialistas, o desaparecimento do
Museu representa uma tragédia para a humanidade. A inconcebível ausência de água
da meia dúzia de hidrantes no local do sinistro para o combate às chamas como
denunciado pelo Corpo de Bombeiros, as labaredas fatídicas do descaso governamental
criminoso com relação ao patrimônio de riquezas guardado no Museu reduziram a
cinzas 20 milhões de peças e 200 anos de referências históricas de incalculável
significado para a cultura.
Em sua apreciada coluna, Élio Gáspari reporta-se ao desastre
do Museu Nacional e a outras ocorrências de passado recente em instituições
culturais igualmente desguarnecidas de um mínimo de salvaguardas mínimas para
enfrentamento de incêndios. “Quem viu as primeiras reações dos hierarcas da
burocracia culturais diante da tragédia da Quinta da Boa Vista – assinala - teve
o sofrimento adicional de ser tratado como cretino. O incêndio foi um acidente
previsível, mas ainda assim, foi um acidente. A estupidificação oferecida pelos
hierarcas foi entulhação deliberada.”
A entulhação, pelo que se extrai das informações a
respeito do assunto, veiculadas por fontes qualificadas, foi ampla, geral,
irrestrita. E, também, bastante
irresponsável. Os órgãos encarregados da preservação dos bens culturais
brasileiros viram-se pilhados em flagrante. Não mais conseguem esconder da
coletividade a precariedade dos meios disponíveis à execução das tarefas elementares
que lhes tocam institucionalmente promover. É o caso até de admitir, como, por
sinal faz outro participante da roda de conversa na feira: “Tamos n’água!”
Cesar Vanucci - Jornalista
(cantonius1@yahoo.com.br)