Muzambinho: uma cidade pré-histórica

Publicado em 08/09/2009 - cidade - Tarcísio de Souza Gaspar

Todo muzambinhense que saiu de sua terra para se aventurar nos grandes centros do país, foi obrigado a passar pela prova de fogo. – Você não é daqui? È paulista? Gaúcho? Goiano? Já sei, é mineiro! E daí vinha a pior parte. Ao proferir o nome da cidade de origem, o muzambinhense ganha uma alcunha ou uma chacota. Ganhei as duas. No período em que vivi na cidade de Niterói, no Estado do Rio de Janeiro, suportei nem sempre amistosamente as inúmeras galhofas lançadas por amigos cariocas. – Muzamba, Milton Neves é seu parente? Repete de novo: porta, porteira, portão. Ainda bem que o famoso comentarista esportivo não é parente meu; mas isto durou pouco. Quando o cantor Tiago Gaspar tornou-se conhecido na telinha, não pude escapar. – É seu primo!!! Todos os muzambinhenses são primos, vizinhos ou já foram à igreja juntos. Afinal, se nem eu, nem Tiago Gaspar, nem Milton Neves estávamos na cidade, quem mais poderia estar? Para os cariocas, eu vinha de um lugar pré-histórico.
Como pretenso historiador, altivamente, eu tentava responder às brincadeiras argumentando os grandes feitos históricos da pequena Muzambinho. A cidade devia seu curioso nome diminutivo a um antigo quilombo, que deve ter existido por aqui, a fim de provar nossas origens africanas. Nascemos da resistência à opressão. Nossos fazendeiros eram abolicionistas e ajudaram a derrubar a escravidão. Quando da Revolução Constitucionalista de 1932, em que São Paulo pretendeu invadir Minas Gerais, foi em Muzambinho que as tropas paulistas caíram definitivamente derrotadas. Prova disso são as marcas de bala ainda hoje visíveis em algum imóvel da praça, palco da sangrenta batalha. E eu enfatizava aos cariocas que meu povo havia evitado o domínio paulista, feito de grande valor para o povo do Rio de Janeiro, tradicional desafeto do povo de São Paulo. Além disso, Muzambinho já fora a “Atenas Sul - Mineira”, capital da cultura nacional, tendo seu colégio fundado no início do século. Fora aqui também que Getúlio Vargas, ao vir inaugurar a Escola Agrícola em 1954, redigiu sua carta-testamento, inspirando-se no ambiente literário local. Muzambinho possuía uma estrada de ferro construída com capital inglês e produzia café suficiente para abastecer o país. Durante a Ditadura Militar, formara-se na cidade o mais importante grupo guerrilheiro, o MR-8 (Muzambinho Revolucionário), constituído por oito jovens comunistas que atiraram pedras na vidraça da Matriz e picharam um muro, alarmando a comunidade católica e os militares. O cinema muzambinhense exibira a estréia de “E o Vento Levou” e nas sessões de matinê os namorados podiam dar-se as mãos discretamente, antes do casamento. E por falar em show businnes, nossa cidadela foi recentemente mencionada em uma novela das nove, que tratava de descendentes italianos e de um marido traído, tendo o ator Fábio Assunção pernoitado no famoso Hotel Beato, perfeitamente recriado nos estúdios da Globo.
Mas, a verdade é que, embora inventasse tais fatos para contar a grandeza de Muzambinho, eu sabia que nosso passado permanecia desconhecido. Quando a imaginação rareava, meus relatos históricos caíam no vazio, despertando a desconfiança dos malandros cariocas.
Desde o início até nossos tempos, para falar sobre a história de Muzambinho foi preciso mais imaginação que substância. Pois a substância da história são os documentos. Nesta matéria, tudo se faz com documentos. Fotografias, despachos públicos, vídeos, entrevistas, imagens, boletins policiais, autos judiciais, notas de cartório, cartas particulares, contabilidade de empresas...  Enfim, tudo aquilo que os historiadores (ou aqueles que pretendem escrever história) usam ou deveriam usar para conseguir captar elementos do passado e, então, elaborar sua obra. E, quanto a isto, os muzambinhenses ainda se encontram, de fato, na pré-história.
Não me refiro aqui ao período pré-histórico, no interior do qual os naturais de grandes cidades costumam julgar encontrar-se a cidade de Muzambinho. Sim, eu respondia aos incrédulos cariocas que em minha terra natal existiam aparelhos televisores, celulares, automóveis e até mesmo computadores, com direito à internet e jogos de paciência. Mas, infelizmente, não podia responder-lhes que minha terra possuísse uma história, a não ser a que eu próprio inventava. Pois Muzambinho não tem história porque ela nunca pôde ser escrita, devido à perda, à desorganização e ao total desleixo com que são tratados os documentos históricos da cidade.
Nós, muzambinhenses, estamos na pré-história no que diz respeito ao cuidado, à preservação e à disponibilização pública dos documentos históricos pertencentes à cidade e aos seus cidadãos. Não possuímos qualquer arquivo público destinado ao recolhimento de material. Não possuímos qualquer organismo de preservação do patrimônio histórico e cultural de nossa cidade, com exceção de um carente museu municipal. Para ilustrar nosso desleixo, basta saber que toda a documentação antiga expedida na Prefeitura, com fontes escritas que remontam às primeiras décadas do século XX, acha-se jogada (para não dizer outra coisa) num pequeno cômodo do almoxarifado, à espera dos roedores, das goteiras ou mesmo de mão humana que lhes dê fim, em uma fogueira de papéis velhos e imprestáveis. Os demais órgãos públicos estão desprovidos de qualquer mecanismo de arquivamento e preservação de seus documentos, além do que é prescrito em suas administrações rotineiras. E o que vale para os órgãos públicos, torna-se ainda pior no âmbito particular.
Desnecessário dizer que a perda de documentos significa muito mais que a perda de nossa história. Significa também manter-se na ignorância, na pré-história.

Tarcísio de Souza Gaspar - Historiador e Professor de História