Publicado em 22/06/2018 - educacao - Da Redação
Governo do Estado aprimora a educação
em comunidades remanescentes de quilombos ao inserir e dar preferência à
designação de profissionais e auxiliares quilombolas
Na
pequena comunidade com ares de interior, as casas se organizam no entorno da
Igreja de Nossa Senhora do Rosário - padroeira das quase 400 famílias que ali
residem - e da rua principal, uma das únicas asfaltadas. Localizado na área
rural de Santa Luzia, Território Metropolitano, o quilombo de Pinhões, batizado
devido à abundância de árvores de pinhão no local, teve sua história iniciada
no Século 18 e recebeu a certificação pela Fundação Palmares como comunidade
quilombola no ano passado.
E é
justamente o orgulho em ser reconhecida como remanescente quilombola que a Escola
Estadual Padre João de Santo Antônio, uma das 29 escolas quilombolas do Estado
(e a única escola pública dentro da comunidade), trabalha com os alunos. Eles
começam desde os seis anos de idade a estudar o tema e sua
importância histórica, conhecendo locais importantes da comunidade e seus
significados.
“O
MEC nos reconheceu como escola quilombola em 2011, mas o tema não era
trabalhado porque não éramos orientados a isso e a comunidade mesmo ainda
não tinha sido reconhecida. Os meninos não queriam trabalhar com isso. Para
eles, ser descendentes de negros era questão de vergonha”, conta a diretora da
escola, Paola Catharine Cordeiro Silva.
“Esse
olhar diferenciado para a escola quilombola veio com a professora Macaé. Quando
ela entrou na Secretaria de Educação, pudemos participar de cursos específicos,
nos quais levamos professores, supervisor e até auxiliares. Foi muito bom,
porque trocamos experiências e percebemos, inclusive, que fazíamos muita coisa
errada. Passamos a trabalhar o tema o ano inteiro, e não só no Dia da
Consciência Negra. E hoje os alunos já têm esse sentimento de pertencimento, de
se entenderem como quilombolas”, completa Paola.
A
educação escolar quilombola hoje comemora os avanços, mas começou a ter uma
nuance diferenciada em Minas Gerais apenas em 2015, a partir da elaboração do
primeiro diagnóstico institucional específico e da criação do Grupo de Trabalho
da Educação Quilombola (GTEQ), pela Secretaria de Estado de
Educação (SEE-MG).
No
ano seguinte, a SEE publicou a Resolução 2945/16, que institui processo de
escolha de servidores preferencialmente quilombolas para os cargos de diretor e
vice-diretor nas escolas estaduais. Em 2017, foram publicadas, ainda, as
Diretrizes Estaduais para a Educação Escolar Quilombola.
“Em
janeiro deste ano, implementamos processo específico de designação para as
escolas quilombolas, com a Resolução 3677/18, que prioriza a contratação de
quilombolas para o cargo de professor e de auxiliares – cantineiras,
faxineiras, secretárias, entre outros”, explica a superintendente de
Modalidades e Temáticas Especiais de Ensino da SEE, Iara Pires Viana.
Com
essa iniciativa, inédita no Estado, houve aumento de 90% no quadro de
profissionais de origem quilombola entre os auxiliares de serviço, e de 50%
entre os professores estaduais.
“Conversamos
com as lideranças quilombolas, e percebemos que escolas gestadas por pessoas
das próprias comunidades e tendo em seu quadro professores, servidores,
assistentes também quilombolas poderia, sim, fazer muita diferença para o
avanço da educação escolar quilombola. Foram muitos anos de invisibilidade, de
negação de direitos e identidades para essas pessoas e para as escolas”, relata
Iara.
“Essas
resoluções mudam significativamente a educação escolar quilombola no Estado,
pois ampliam o que se chama de educação específica. Esse entendimento da
especificidade de cada quilombo devolve para essas comunidades tradicionais o
direito e o lugar de fala de cada uma”, completa.
"Percebemos
que escolas gestadas por pessoas das próprias comunidades e tendo em seu quadro
professores, servidores, assistentes também quilombolas poderia, sim, fazer
muita diferença para o avanço da educação escolar quilombola. Foram muitos anos
de invisibilidade, de negação de direitos e identidades para essas pessoas e
para as escolas”
Iara
Viana, superintendente de Modalidades e Temáticas Especiais de Ensino da SEE
Na
Escola Estadual Padre João de Santo Antônio, em Pinhões, após as resoluções,
hoje são cinco professores quilombolas contratados – antes, eram três. E, desde
o início deste ano letivo, todos os seis funcionários auxiliares (ATB e ASB)
são da comunidade. Antes, apenas um era quilombola.
A
aluna Tamara Leandra Celestino, 18 anos, conta que descobriu ser quilombola na
escola. “Isso nunca foi abordado em casa. E é bem legal porque, ao invés de
nossos pais passarem isso para a gente, é a gente que está passando para eles”,
diz. “Quando eu fiquei sabendo que aqui era uma comunidade eu tive receio
em aceitar, porque eu já era grande e não entendia muito do assunto. Hoje, se
me perguntam de onde sou, eu já falo que sou de Pinhões, uma comunidade
quilombola que fica em Santa Luzia”, completa. Ouça mais o depoimento da Tamara aqui.
Na
mão contrária, Maria Paula Gonçalves, 17 anos, recebeu os primeiros
ensinamentos sobre Pinhões com o pai, que é neto de escravos. “Tenho sobrenome
de escravo, pelo menos é o que meu pai fala. Ele conta como foi a divisão para
criar Pinhões, quais eram as fazendas que tinham escravos. Quais são os
moradores daqui que têm algum parente que era escravo também... Ser quilombola,
para mim, é fazer parte da história, porque a comunidade surgiu por causa dos
escravos. Eles que vieram para cá e construíram as primeiras casas, para cuidar
da terra dos seus senhores”, afirma.
"Hoje,
se me perguntam de onde sou, eu já falo que sou de Pinhões, uma comunidade
quilombola que fica em Santa Luzia”
Tamara
Celestino, 18 anos, estudante
Identidade
Como
remanescentes dos antigos quilombos, os moradores das comunidades quilombolas
precisam lidar, ainda, com o preconceito. A estudante Núbhia Helen Martins da
Conceição, 18 anos, conta que sempre precisou enfrentar o racismo. “Desde
pequena ouvia piadinhas, chegava em casa e chorava. E eu tinha preconceito
comigo mesma, e isso foi só agora que descobri. A gente tem mais quilombola
aqui na escola, fala desse assunto, vai entendendo mais as coisas, sabendo a
origem da gente”, diz. Ouça mais.
Para
tratar do tema dentro da escola, Núbhia e os colegas fizeram um vídeo sobre
identidade negra. Veja aqui.
"Ser
quilombola, para mim, é fazer parte da história, porque a comunidade surgiu por
causa dos escravos. Eles que vieram para cá e construíram as primeiras casas,
para cuidar da terra dos seus senhores”
Maria
Gonçalves, 17 anos, estudante
Qualificação
e oportunidade
Outro
importante avanço possibilitado por essas mudanças foi a abertura de
oportunidades de emprego para os moradores dentro da própria comunidade. É o
caso da Maria Valdete Costa, 52 anos, nascida em Pinhões. Ela nunca havia
trabalhado na comunidade, e precisava se deslocar cerca de 100 quilômetros
diariamente, entre ida e volta, para trabalhar como babá. Para isso, acordava
às quatro horas da madrugada e pegava oito ônibus todos os dias, o que também
significava um rombo de quase R$ 600 no salário.
“Eu
precisava trabalhar, e como não tinha oportunidades perto eu tive que ir para
longe. Sempre trabalhei longe. Quando me falaram da vaga na escola e que eu
tinha direito por ser quilombola, me inscrevi, mas nem fiquei tão esperançosa.
E eu fui classificada, né? Sempre tive vontade de trabalhar aqui, mas a gente
sabia que era complicado, burocrático. Parece um sonho que eu consegui. Agora
eu atravesso a rua e chego ao trabalho”, comemora. Valdete está há três meses
na Escola Estadual em Pinhões, onde trabalha como cantineira.
Ouça aqui o depoimento da Maria Valdete.
Observa-se,
ainda, um aumento da busca por qualificação profissional entre os quilombolas.
“Logo no início da gestão, tínhamos um levantamento preliminar que indicava uma
baixa escolarização nas comunidades. E o que a gente percebe? Que, quando a
legislação é alterada, há um avanço grande no sentido de alcançar esses
lugares. Temos um número crescente de quilombolas procurando o ensino médio de
novo, adentrando as universidades”, destaca a superintendente de Modalidades e
Temáticas Especiais de Ensino da SEE, Iara Pires Viana.
“Quando
possibilitamos a entrada dessa população para a gestão ou para o quadro
funcional de uma escola, estamos invertendo o que a história, há muito tempo,
nos induz a acreditar: que essa população não tem competência, não tem
habilidades para assumir determinados postos. Ao inverter isso, a gente inverte
também uma lógica social, e modificamos, inclusive economicamente, a estrutura
e a organização destas comunidades”, frisa Iara.
Veja
o vídeo produzido pela Agência Minas Gerais na escola em Pinhões: https://youtu.be/AmVjcRQxQ3I
Escola
premiada
Há
48 anos, quando a comunidade quilombola de Caititu do Meio, no município de
Berilo (Território Médio e Baixo Jequitinhonha), começava a crescer, foi criada
uma escola rural na sala da casa de uma professora voluntária. Posteriormente,
a instituição foi batizada Escola Estadual Nossa Senhora Aparecida, e hoje
educa 93 alunos do 1º ao 9º ano do ensino fundamental.
“São
crianças e jovens oriundos de aproximadamente 40 famílias descendentes de
afro-brasileiros, filhos de pais semianalfabetos ou analfabetos, produtores
rurais com baixo poder aquisitivo”, relata a diretora Alaíde Amaral.
Com
gestão quilombola, a escola se mantém como avançada há três anos consecutivos
nas avaliações de ensino externas, fato inédito em Minas Gerais. “Nossos alunos
são estimulados, diariamente, a se organizarem em pequenos grupos de estudos e
debates em sala de aula para estudar. A escola voltou seu trabalho educativo
com maior intensidade para o resgate e reconhecimento do povo afrodescendente”,
diz Alaíde, que está na escola há 20 anos.
“A
mudança de hábitos para aceitação, principalmente da cor da pele, foi
gradativa. Aos poucos os alunos foram se sentindo parte da história. Hoje são
orgulhosos e não medem esforços para mostrar sua identidade. Procuramos manter
viva a história em nosso ambiente de trabalho”, destaca.