Muzambinho perdeu Vonzico: o homem das Histórias, “Causos” e “Estórias”

Publicado em 21/09/2019 - especial - Da Redação

Muzambinho perdeu Vonzico: o homem das Histórias, “Causos” e “Estórias”

Quando eu era criança, na EE Cesário Coimbra, uma das minhas professoras primárias me explicou a diferença entre História e Estória, o que me convenceu bem. Meu pai, professor de Português, foi conciso: “Estória é uma invenção,  é só História mesmo”. Na faculdade de História vi que havia razão nos dois entendimentos – a palavra História como ramo de estudo tem três significados diferentes (a Ciência, o devir do tempo e a narração dos acontecimentos) e em inglês é nítida a diferença de History e Story (História e Estória), sendo a palavra Estória uma adaptação imprópria de Story (não é exatamente a mesma coisa, mas o artigo é curto para preocuparmos com isso!).

Desde o início do jornal “A Folha Regional”, na segunda edição, o colunista Ivon Waldete Vieira, escrevia a seção “História, “Causos” e “Estórias””, grafando Estórias entre aspas, corretamente. Eu tinha 13 anos mas lia todas as semanas, com encantamento no início e depois com certa desconfiança. 

Vonzico contribuiu com sua coluna com assuntos que se popularizaram como a procissão fantasma, a lenda da Maria Comprida, a assombração do Colégio Comercial, o cão falante, o disco que soltava som nas margens do Chico Pedro sendo tocado por um galho de árvore, os salgadinhos feitos com vômito de um bêbado e até histórias polêmicas sobre Reis Magos e prostitutas, esta última gerando um longo debate “epistemológico” com Maurício Ramos Thomás. Aliás, mereceriam a reedição dos debates de argumentos Vonzico e Maurício sobre o teor dos “causos”, pois o conteúdo das réplicas e tréplicas eram muito interessantes e em minha juventude me pregavam nos jornais, ansioso pela próxima edição – infelizmente preciso procurar os debates, pois seria merecido reeditar aqui as partes mais interessantes e ricas dos debates.

Foi Vonzico, em sua coluna, que popularizou a célebre e veridica histórica da morte do fazendeiro Ananias Bueno, que estava sendo velado em Muzambinho, e, de repente, se levantou do caixão,  pois havia tido um ataque de catalepsia e os médicos acreditaram que ele estava morto e não estava. Vonzico também recuperou muito das nuances da história de nossa cidade, do fundador Pedro de Alcântara, da luta de Pica Paus X Tucanos, da morte do reitor, da Era Vargas, dos ex-prefeitos. Foi por ele que pela primeira vez ouvi falar do livro de Moacyr Soares Bretas sobre Muzambinho - Vonzico narrava colocando o seu ponto de vista e a presença dele e de sua família como membros partícipes dos episódios vividos. Seu estilo era peculiar,  citando em suas histórias personagens de nossa cidade,  dando um tom  e particularidade que se adequavam ao sentimento de comunidade.

Foi com Vonzico que descobri que a palavra barbeiro para quem dirige mal tem origem em Muzambinho e que o herói paulista da revolução de 1932, Orlando Alvarenga, o 5º do grupo MMDC, era nascido em nossa cidade – dois fatos,  aliás,  que inicialmente vi com desconfiança e depois descobri que o primeiro é uma questão histórica antiga e séria e o segundo fato é verídico, inclusive contado pelo governo paulista – e a certidão de Orlando está no museu da cidade.

E nessa efervecência que Vonzico era chamado para fazer palestras nas escolas e para participar de juris em saraus e eventos culturas pela cidade. Na época ele já era aposentado, com  cabelos grisalhos e mobilidade relativamente reduzida, ostentando costeletas e bigode. Uma figura controversa,  com diversos adversários e críticos – inclusive eu fui um feroz crítico de seu trabalho como historiador e publiquei vários artigos que o incomodaram – ele escrevera que a “História de Muzambinho é imutável” para me criticar – e eu o rebati, e travamos alguns debates no semanário “A Folha Regional”. Além das polêmicas com Maurício e comigo – talvez seus mais ferozes adversários teóricos, vários debates foram feitos dele com outras pessoas dessa cidade: Marcos Gaspar,  Jota Dias, Fernando Magalhães.

Vonzico sempre se posicionou politicamente e em geral era adversário do deputado Marco Régis, mas este, em 8 de junho de 1996, no plenário da Assembléia Legislativa de Minas Gerais, pronunciou sobre Vonzico com belas palavras, que constam da contracapa de seu livro: “(...) um cidadão polêmico, mas merecedor de nosso respeito. Por um  lado, temos as nossas restrições a sua faceta de jornalista político, onde exprime idéias conservadoras ou parciais ao grupo que hoje tem o domínio político da cidade. Por outro, ele tem a nossa admiração pelas suas inigualáveis qualidades de cronista e historiador, possuindo um manancial literário inesgotável, como temos podido acompanha-lo como um atuante colaborador deste semanários (“A Folha Regional”). Dentro de minha sensibilidade humana, não furta-me-ia em reconhecer os méritos pessoais ou profissionais de quem quer que seja. Diante disto,  gostaria de tornar público que, recentemente, em sessão solene em que a Assembléia Legislativa de Minas Gerais homenageava a Academia Mineira, dirigentes desta, indagando-lhe quais os critérios de admissão à mesma, ocasião em que mencionamos o nome de um conterrâneo para lá nos representar. Nossa indicação, em que pede outros talentos das nossas letras como Ailton Rocha, Meiga Vasconcelos, Pedro Pioli Neto e Ailton Santos,  seria Vonzico, porque ele é encarnação da alma muzambinhense”.

Vonzico amava Muzambinho, e era um cronista, como Jesus,  um  contador de “causos”. Suas publicações em “A Folha Regional” merecem uma coletânea, a publicação de um livro – e eu adoraria contribuir com a popularização de seu trabalho. Aliás, entre as pessoas que eu desejaria publicar seus textos e escritos nunca publicados sob a forma de livro estão Alice de Abreu Siqueira, Salatiel de Almeida e Vonzico, pessoas com  genialidades merecedoras de destaque para o futuro. A narrativa de Vonzico em primeira pessoa das coisas que viveu são uma jóia rara, crônicas que poderiam ser utilizadas em sala de aula, tamanha sua riqueza.

Seu ufanismo apaixonado pela nossa cidade gerou frases como : “até em sonhos nossa cidade é respeitada pela sua tradição de cultura e inteligência de seus filhos”

Vonzico foi homenageado por Milton Neves em sua célebre coluna “Que fim levou?”. Em 7 de novembro de 2006 foi agraciado com a Medalha do Mérito Legislativo Prof. José Mariano Franco de Carvalho,  destinado para pessoas que contribuem com o município de Muzambinho, honraria máxima do poder legislativo local.

Ivon Waldete Vieira, o Vonzico, nasceu aos 1º de novembro de 1925, em Muzambinho - MG, filho do motorista particular Waldomiro Vieira e da dona de casa Noêmia Barbosa Vieira. Foi casado com  Terezinha de Almeida Vieira, e teve três filhos biológicos e um adotivo. Tinha 13 irmãos, todos começados com a letra “I”.

Um de seus sobrinhos, filho de seu irmão Ifraim, é o ator da Globo, Alexandre Nero, protagonista de duas novelas do horário mais nobre da televisão. A sua irmã Ivonete foi casada com o ator Edgard Franco da TV Tupi. 

Vonzico iniciou seus estudos no Ginásio Mineiro de Muzambinho e posteriormente no Ginásio São José. Entre 2 de janeiro de 1941 e 1º de outubro de 1942 foi contínuo da prefeitura de Muzambinho, nomeado pela portaria 48 pelo prefeito José Januário de Magalhães.

Concluiu seus estudos em São Paulo onde morou 42 anos antes de aposentar em 1989 e retornar para Muzambinho em 1990 (no ano que morreram sua mãe e seu pai) e viver intensamente a vida cultural  de Muzambinho – onde publicou em um lindo livro ilustrado por Paulo Dipe seus causos em 2000 -  até, em uma sexta-feira, dia 13 de setembro de 2019, falecer na cidade que nasceu, viveu e amou,  sendo um dos mais importantes ícones da cultura, do folclore e da história de nossa cidade e o mais profundo e importante cronista de todos os tempos da linda “Athenas do Sul de Minas”.

Prof. Otávio Luciano Camargo Sales de Magalhães (professor.otavio@yahoo.com.br)


Nota da Academia Muzambinhense de Letras

A Academia Muzambinhense de Letras, nestas linhas de realidade, lamenta, com tristeza, a desconexão com o Acadêmico Ivon W. Vieira, mais conhecido por Vonzico, ocupante da Cadeira nº 2, na qual terá o seu nome gravado para todo o sempre, ou seja, imortalizado.

Suas histórias, causos e estórias, estão na linha do tempo, portanto, na cabeça de quem com ele conviveu, leu o que escreveu, ou ouviu o que contou. 

Viveu Vonzico, a vida contada em diversos prismas, seja da realidade, da brincadeira, da mistura da realidade com o pitoresco, ou da verdade crítica do cotidiano.

Fica o exemplo de uma vida bem vivida, e inscrita nos portais da cultura muzambinhense.