Nas urnas, com Dilma, a chegada da geração guerrilheira ao poder

Publicado em 05/11/2010 - geral - Marco Regis de Almeida Lima

Por letras tortas, finalmente, a verdadeira História do Brasil vai ser reescrita com pinceladas de sofrimento, terror e sangue, cujos vestígios o passado distante quase já tinha apagado.
Certo é que muito desse passado já foi exposto de maneira superficial pela poderosa mídia conservadora desde 1980, a partir de quando os raios de luz da redemocratização brasileira foram deixando para trás a treva da ditadura que sobre nós se abateu, a partir de 1964. Certo é que já houve inumeráveis depoimentos e publicações das vítimas desse período abominável, mas que, quase sempre, ficaram restritos aos círculos de amigos, conhecidos e da intelectualidade, nunca  sendo uma boa vitrine para grande parcela da imprensa que se omitiu e até foi conivente com os algozes. Essa mesma imprensa quer hoje rotular como censura as iniciativas de criação de um Conselho fiscalizador dessa profissão, a exemplo do CRM dos médicos, da OAB dos advogados, do COREN dos enfermeiros, do CREA dos engenheiros e arquitetos, enfim dos conselhos de todas as profissões liberais menos dos intocáveis jornalistas ou de seus poderosos órgãos, que podem tudo, com verdades ou com mentiras. A repercussão da conquista de Dilma Rousseff, nos dois turnos da eleição presidencial brasileira, tem tido o condão mágico de nos remeter aos chamados Anos de Chumbo, onde ela personifica a figura de todos aqueles que foram presos por defenderem a liberdade de pensamento e contrariarem os interesses do capitalismo manipulador da sociedade. Muito mais do que isso, ela é a imagem redimida dos que sofreram a dor física e psicológica causada pela ação monstruosa dos torturadores, nos porões da ditadura. Também daqueles que morreram sob tortura ou sumariamente executados, com suas mortes mal explicadas ou com o sumiço dos seus corpos.
Com a eleição de Dilma, Presidente do Brasil, dá-se a purificação de centenas e centenas de brasileiros – presos, torturados, mortos ou desaparecidos – que carregaram o estigma de subversivos, uma maldição que se abateria, também, sobre os seus familiares, a exemplo do que aconteceu com os Inconfidentes Mineiros. Nesta condição, peço permissão para citar amigos como o ilustre filho de Nova Resende, prematuramente falecido, o advogado e ex-Ouvidor de Polícia de Minas Gerais no governo Itamar Franco,  Dr. José Roberto Gonçalves de Rezende, autor do livro “Ousar Lutar – Memórias da guerrilha que vivi”; o literato Luiz Carlos Santos Neves, há muitos anos residente na Venezuela, cuja mãe foi querida professora e diretora do então Colégio Estadual de Muzambinho, enquanto ele foi aqui presidente do grêmio estudantil em l962; os guaxupeanos Wagner Raggi e Elias “Rabanete”, bem como um saudoso amigo, com quem tive o privilégio de conviver em Belo Horizonte, advogado, ex-deputado federal e convicto militante comunista, Dimas Perrin, autor do livro “Depoimento de um Torturado”.
Gente menos engajada, como eu, que nunca militou em organizacões clandestinas tipo Polop, Colina, MR-8, VAR Palmares e outras,  pode ter tido o azar de ser pego participando de uma simples passeata e, daí, ter percorrido uma “via crucis”, quem sabe até a morte. Considero-me um abençoado porque nunca fui pego em manifestações estudantis, embora tenha dado carreiras em fuga pela Av. Afonso Pena, em Belo Horizonte, embora tenha participado de inúmeras assembléias estudantis nos diretórios acadêmicos (DAs) das escolas federais de medicina, engenharia, arquitetura e ciências econômicas e até havendo sido secretário do nosso DA, constando minhas assinaturas em atas onde eu tangenciava conversas e objetivos, pois sabia que iriam parar nos órgãos de repressão. Mas os meus dois piores momentos se deram no primeiro cerco militar à minha escola – medicina da UFMG -, ocasião em que passamos mais de oito horas sitiados, atrás de barricadas, aguardando a invasão que não se deu, fruto de negociações da diretoria com órgãos de inteligência, em torno das 22 h. De outra feita, fugimos de um pesado confronto, com bombas de gás lacrimogênio, pedradas, até tiros, na Praça 7, coração de BH, invadindo as dependências da Assembleia Legislativa, que foi cercada  da manhã até a tardinha a fim de que evitassem a fuga de uns quarenta estudantes. Surpreendentemente, recebemos a proteção e até sanduíches por parte dos deputados, principalmente do presidente do legislativo mineiro, embora a gente tivesse consciência que se a polícia quisesse invadir deputados não estavam lá com força para isso evitar. Fomos autorizados a sair dois a dois em carros de deputados e me lembro que o meu benfeitor foi o deputado Wilson Alvarenga do PTB, situação que pude ver no telejornal da noite da TV Itacolomi, inclusive a minha própria liberdade, com os braços tampando o rosto. Muitos anos depois vim a saber que a proteção a nós foi motivada, principalmente, porque no grupo de estudantes asilados na Assembleia estava o hoje Secretário do Governo de Minas, Manoel Costa Filho, cujo pai, Manoel Costa, era o presidente, segundo me contou o próprio filho.
Nessas idas e vindas do destino, quem sabe eu possa ter tido a chance de ver e até de falar com a então militante do Colégio Estadual Milton Campos, hoje a presidente eleita do Brasil, Dilma Vana Rousseff.  Mas não me lembro. Certo é que vi pela TV, nos últimos dias, a fala de um dos mais contundentes líderes estudantis da nossa época, Apolo Heringer Lisboa, que disse haver ensinado marxismo à Dilma. No dia da formatura do Apolo,  turma de medicina de 1967, eu estava lá para prestigiar a formatura do muzambinhense, Dr.Camilo Márcio Coimbra, que poderá confirmar o fato de Apolo brandir o seu diploma, na hora em que o recebeu, gritando “dedico este diploma a Che Guevara”. Claro que ele não sairia livre daquela solenidade, mas, driblou a polícia e saiu. Ele esteve muitos anos exilado na Argélia e hoje é professor de medicina da UFMG, dedicando-se à causa ambiental, especialmente como coordenador do Projeto Manuelzão, que trabalha na despoluição do rio das Velhas, que corta a grande BH, sendo um dos principais afluentes do rio São Francisco. Não atua em política partidária. Durante o meu período como deputado estadual, defendendo a bandeira da defesa das águas de Minas e contra a privatização de Furnas, desejo do presidente Fernando Henrique, fui homenageado pela entidade ambiental, atrás citada. Nessa ocasião, perguntei ao Apolo como ele se safou do cerco policial na noite da sua formatura ao que ele me respondeu: “estava tudo planejado, um automóvel me esperava nos fundos e eu tinha passagem de ônibus comprada para São Paulo, comemorando, assim, a noite da minha formatura dentro de um ônibus”,   
O Presidente Lula foi o precursor deste momento. Ele abriu as portas de uma nova mentalidade política no País, promovendo nosso crescimento socioeconômico, com inegável inclusão social, e fazendo valer a nossa soberania em questões internacionais tais como: oposição à invasão americana no Iraque; as ações em prol do meio ambiente, com destaque à posição assumida na Conferência de Copenhague; na solidariedade ao Irã de Ahmadinejad; na proteção ao exilado político italiano Cesare Batistti; no fortalecimento do Mercosul e das relações com os demais vizinhos sulamericanos; e no sucesso da nossa economia frente à crise econômica mundial.
Lula também foi preso político só que em outras circunstâncias, ou seja, como um líder sindicalista de fama mundial e com o regime autoritário já desgastado pelos seus mais de dez anos; Dilma e seus contemporâneos eram anônimos e “ameaçadores” militantes da luta armada, numa época em que instrumentos como os atos institucionais - inclusive o multitentacular AI-5, editado em 13 de dezembro de l968 - eram aplicados com poderes intimidadores e repressivos. Vale lembrar que a tal luta armada foi um tanto quanto fantasiosa, pois a resistência à ditadura, mesmo a posterior Guerrilha do Araguaia, era infinitamente carente de armamento pra valer, em luta desproporcional com o aparato militar, uma repetição mais ou menos melhorada dos tempos de Canudos, de Antonio Conselheiro.
Quando Fernando Collor de Mello tomou posse como presidente da República jactose que era a vez da sua geração jovem governar o País. Penso que estava equivocado, pois, justiça seja feita, deveria ser Leonel Brizola, que retomaria o poder usurpado pelos militares do seu cunhado Jango Goulart. Com a sua queda veio Itamar Franco, depois oito anos de neoliberalismo com Fernando Henrique e, a seguir, o fenômeno Lula, que pavimentou a trajetória de Dilma Rousseff. Com Dilma, o poder brasileiro vai para uma geração que merecia esta oportunidade, porque a maioria das suas lideranças sofreu lavagem cerebral, prisões, perseguições, mortes, virando ossadas anônimas em cemitérios como o de Perus, em São Paulo, ou nos confins do Araguaia. Dilma é uma autêntica sobrevivente dos Anos de Chumbo e a predestinada dentre centenas que sofreram ou morreram pela liberdade da Pátria Brasileira.