Publicado em 08/02/2013 - geral - Da Redação
Técnica desenvolvida na FEA pode ajudar na formulação de ingredientes menos nocivos
A autora do estudo, defendido na Faculdade de Engenharia de Alimentos (FEA), trabalhou em laboratório com um modelo de proteína chamada beta-lactoglobulina, existente no leite de mamíferos, exceto no de humanos, podendo desencadear desde um simples processo alérgico, como coceira, até sintomas mais graves, atingindo o trato gastrointestinal e provocando diarreia, irritação e fezes sanguinolentas.
A pesquisa envolveu a modificação estrutural dessa proteína com a polimerização por transglutaminase (que catalisa a reação de ligação cruzada em diversas proteínas), em conjunto com a hidrólise por proteases (uma reação química de quebra das ligações com os aminoácidos que compõem as proteínas). A associação desses tratamentos é uma estratégia pouco adotada, mas que demonstra boas chances de diminuir a resposta imune das proteínas.
Essa tarefa implicou alterar a proteína em questão em diferentes pontos, para avaliar se ainda permanecia o seu componente alérgico. “Não queríamos que ela ficasse como uma fórmula hidrolisada e sim que conservasse algumas das suas características. Mas reconhecemos que, a partir de o momento em que acontecem alterações, ela já não pode ser mais reconhecida como algo alergênico.”
Orientado pela docente da FEA Flavia Maria Netto e realizado no período de 2009 a 2012, o estudo investigou as alterações das proteínas dos alimentos que podem ocasionar alergia alimentar, uma doença cada vez mais frequente nos países ocidentais. O leite bovino, segundo ela, “puxa” a lista dos alimentos potencialmente alergênicos.
Apesar disso, já existem hoje alguns produtos disponíveis no mercado como fórmulas especialmente destinadas às crianças com este problema, no entanto, com um limitante: podem apresentar uma alergenicidade residual decorrente do fato de a hidrólise ser também limitada, não conseguindo eliminá-la por completo.
Na verdade o que Flavia e Mariana, além do grupo de pesquisa como um todo, esperavam era criar novas possibilidades ao que se tem no momento em termos de produtos alimentícios que transcendam as fórmulas, os iogurtes e os outros produtos derivados do leite de vaca.
Sintomas
Desenvolver alergia a esse tipo de leite não é o mesmo que intolerância ao alimento, que envolve um processo voltado à incapacidade de digestão da lactose, e não uma reação alérgica. Com isso, quando o organismo deixa de produzir a enzima lactase, gera cólica e diarreia.
A proteína estudada por Mariana não é encontrada no leite materno. Este é um ponto crucial a ser esclarecido, sinaliza ela, já que o leite materno é mais indispensável ainda nos primeiros meses de vida, e o recém-nascido pode não aceitar uma proteína vinda do leite bovino, comumente usado como substituto.
A alergia avaliada afeta mundialmente até 8% das crianças com idade abaixo de três anos, porém até 2% dos adultos também podem perpetuá-la para a vida. “Por isso da preocupação, porque tal sentença não envolve só o leite. Também os seus derivados e as bebidas lácteas”, informa a pesquisadora.
Há fármacos que ajudam a debelar essas alergias, e eles já são comuns no país. Mas a ideia do grupo é desenvolver um produto que propicie novas alternativas, com doses capazes de diminuir a resposta no indivíduo, e revelar a atuação das enzimas nas proteínas do leite.
Já existe inclusive um trabalho sendo feito em conjunto com a Faculdade de Ciências Médicas (FCM) em que são testados métodos de avaliação de alergenicidade. O professor Ricardo Zollner, da Disciplina de Alergia e Imunologia Clínica, é o responsável médico pelo estudo.
Achados
Com os dois processos enzimáticos, notou-se, foi possível diminuir a resposta alergênica da proteína modelo com a alteração de epítopos (parte da proteína que pode provocar a alergia). Isso foi mensurado por meio do soro de sangue.
Assim, quando se faz o contato dessa proteína modificada com o soro, já se verificam mudanças em relação à proteína não modificada. Em um dos ensaios, a alteração foi tão significativa que reduziu a alergenicidade da proteína a quase zero. “São resultados ainda preliminares, contudo agora estamos usando a matriz toda da proteína do soro de leite”, relata Mariana.
Para observar a alergenicidade da proteína modificada, foi utilizado soro proveniente de sangue de crianças alérgicas ao leite. Uma pequena fração desse soro foi avaliada por Mariana com a devida autorização do Comitê de Ética. O trabalho também envolveu a administração a animais.
Esse soro, que contém as imunoglobulinas (anticorpos), sustenta Mariana, é o gatilho do processo alérgico. Quem tem essas imunoglobulinas para determinadas proteínas pode reagir com elas, dando início a um processo bioquímico que leva à alergia.
O que se faz ainda hoje é que, quando uma pessoa tem alergia a determinado alimento, ele é retirado de sua dieta, por desencadear o processo. Não há muito o que fazer, expõe Mariana.
Ocorre que o leite é uma fonte de proteínas com alto valor biológico e de cálcio para a formação dos ossos e dos dentes. “Logo, é preciso tomar muito cuidado: não é aconselhável cortá-lo da dieta sem motivo explícito ou antes de ser diagnosticado o real motivo dessa medida”, alerta.
No caso do leite especificamente, são encontrados para bebês alguns formulados comerciais, como o Nan-HA, por exemplo, cujas proteínas sofreram hidrólise, resultando em moléculas bastante fragmentadas, o que acaba por favorecer a absorção dos alimentos pelo organismo infantil.
“Por essa razão, também estamos estudando outros processos, porém há muito o que fazer a fim de desvendar prováveis aplicações como ingredientes proteicos de fundamental valor à alimentação das crianças”, afirma a doutoranda.
A despeito disso, realça a autora, eles não podem simplesmente ser bons por não causar resposta. Precisam ser nutricionalmente adequados e, se possível, ter um aspecto sensorial mais agradável do que se tem para os ingredientes e para os hipoalergênicos disponíveis, que são pouco palatáveis.
Se as investigações evoluírem, poderão surgir novos ingredientes para reduzirem as alergias, e não só para a proteína do leite, como ainda para a soja, o ovo e o trigo. Cada matriz é uma, esclarece Flavia, e merece estudo.
De acordo com a professora, Mariana deu início a uma nova linha de pesquisa, “fornecendo mais ferramentas enzimáticas para a modificação de proteínas”. Por outro lado, trouxe essa área para o estudo da alergia a proteínas, que ainda não era avaliada na FEA, somente na área médica e em outros países.
A parceria com a FCM, pontua Flavia, tem rendido muitos frutos. “O professor Ricardo Zollner vem publicando com a gente, contribuindo com o seu conhecimento em Imunologia e nós com o conhecimento na área de Alimentos. Estamos formando alunos para trabalhar nessa interface”, conta.
O projeto iniciado por Mariana deve ter continuidade com o trabalho de outros pós-graduandos sobre questões relativas à quebra das partes das proteínas onde se localizam os epítopos, valiosos para esclarecer o tema.
A intenção é alterar a proteína pela quebra ou pela modificação estrutural. Também atentos ao assunto, pesquisadores estrangeiros do Instituto de Pesquisa em Ciências de Alimentos (Cial), Espanha, associaram-se ao grupo da Unicamp, ampliando as colaborações.
Publicações
- Villas-Boas, MB; Vieira, KP; Trevizan, G; Zollner, RL; Netto, FM. The effect of transglutaminase-induced polymerization in the presence of cysteine on beta-lactoglobulin antigenicity. International Dairy Journal, v.20, p.386 - 392, 2010.
- Villas-Boas, MB; Fernandes, MA; Zollner, RL; Netto, FM; Zollner, RL. Effect of polymerization with transglutaminase on in vitro digestion and antigenicity of beta-lactoglobulin. International Dairy Journal, v.25, p.123 - 131, 2012.
- Sabadin, IS; Villas-Boas, MB; Zollner, RL; Netto, FM; Zollner, RL. Effect of combined treatment of hydrolysis and polymerization with transglutaminase on beta-lactoglobulin antigenicity. European Food Research & Technology, v. 235, p. 801-809, 2012.
- Olivier, CE; Lima, RP; Pinto, DG ; Santos, RA; Silva, GK; Lorena, SL; Villas-Boas, MB; Netto, FM; Zollner, RL. In search of a tolerance-induction strategy for cow’s milk allergies: significant reduction of beta-lactoglobulin allergenicity via transglutaminase/cysteine polymerization: Allergoid generation by polymerization. Clinics, v. 67, p. 1171-9, 2012.
- Olivier, CE; Villas-Boas, MB; Zollner, RL; Netto, FM; Zollner, RL. Allergenicity of Bos d 5 in Children with Cow’s Milk Allergy is Reduced by Transglutaminase Polymerization. Pediat Aller Imm Pul, v. 25, p. 30-3, 2012.
Tese de doutorado: “Efeito da polimerização por transglutaminase e da proteólise na estrutura e antigenicidade da beta-lactoglobulina”
Autora: Mariana Bataglin Villas Boas
Orientadora: Flavia Maria Netto
Unidade: FEA
Jornal da Unicamp