Publicado em 06/09/2019 - marco-regis-de-almeida-lima - Da Redação
Uma lei
aprovada na Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo, de autoria da
deputada estadual Janaína Paschoal (PSL), foi sancionada em 23 de agosto
passado pelo governador João Dória (PSDB), garantindo o direito de escolha da
gestante à cesariana sem qualquer indicação médica, no âmbito do Sistema Único
de Saúde (SUS).
Como profissional
de saúde, mais precisamente com habilitação na especialidade de obstetrícia,
popularmente um médico parteiro, não poderia deixar de opinar num assunto no
qual sempre tive opinião bem formada. Certamente que as aceleradas
transformações científicas e sociais agem como um vendaval derrubando as mais
consolidadas teorias e práticas. Neste caso a ação foi muito mais de força
social do que científica, ainda mais que defendida por uma parlamentar advogada
e posta em prática por um executivo de origem empresarial.
De plano,
desejo desideologizar o meu posicionamento. Até porque aponta-se incoerência
nas correntes de esquerda, que se manifestam contrárias a esta lei conquanto
defendam o aborto indiscriminado como um direito das mulheres. Pessoalmente, em
uníssono com a Organização Mundial da Saúde (OMS) e com as práticas de países
de primeiro mundo, sempre defendi o parto normal como escolha médica, restando
uns 20% para a indicação do parto cirúrgico, obviamente que por razões de
urgência, emergência ou mesmo eletivas. De outro lado, nunca defendi a
liberalização do aborto, restringindo-me à concordância com suas aplicações na
legislação brasileira, isto é, nos casos de estupro, mal formação fetal e
enfermidade que coloque em risco a vida da mulher grávida. Entretanto, nunca
fui chamado a intervir em situações como estas nem sei mesmo se as praticaria.
Os casos que passaram pelo meu conhecimento foram os de bebês anencéfalos, qual
seja, nascidos sem cérebro, nos quais deixei por conta da natureza os períodos
de sobrevivência, quase sempre de poucos minutos ou horas.
Havendo desenvolvido a minha formação obstétrica em uma maternidade de Belo
Horizonte, onde ocorriam de cinco até mais dez partos por dia, não poderia mesmo
ter me inclinado pelas cesarianas, porque o hospital não estava apto a realizar
demasiado número de procedimentos cirúrgicos. Contando sempre com um
anestesista na equipe de plantão, sempre fui movido à humanização dos partos
normais, sobretudo convocando tal profissional para aplicar meios analgésicos
nas parturientes, mesmo que, naquela época, ele não fosse remunerado por esse
ato médico, uma atitude generosa dele e do hospital, nos idos de INPS ou de
Funrural. A analgesia é uma conquista muito recente dentro do atual SUS,
mas, nem sem ela dever-se-ia usar da expressão violência obstétrica sem
considerar uma série de fatores, o principal deles, entendemos, que Bloco
Obstétrico não é câmara de tortura, como pensam os aplicadores desse termo.
Aliás, a fim de fazer justiça com os colegas anestesistas de Muzambinho e Monte
Belo, aqui também, eles sempre estiveram solícitos e disponíveis nas mesmas
situações que descrevi para épocas pretéritas.
Na
citada maternidade belorizontina, eram frequentes os atendimentos por
hemorragias do primeiro e até do segundo trimestres da gravidez. Era um tempo
em que o ultrassom apenas vinha chegando, um exame ainda inacessível à maioria.
Ainda nem pensar no exame de beta-HCG, um exame de sangue mais sensível para
uma suposta gravidez viável ou já perdida. Era apenas o antiquíssimo exame
Pregnosticon, na urina. Diante de uma forte hemorragia, com o exame de urina
negativo para gravidez, era inevitável a indicação de uma curetagem uterina,
ainda que pudesse o embrião estar vivo, e mesmo que estivéssemos diante de uma
fase seguinte a um aborto criminoso, pois, nosso papel era de médico não de
policial.
Na
minha volta à região, na década de 1980, dez anos depois de formado, encontrei
uma prática comum pelas cesarianas nas diversas cidades por onde trabalhei. Não
era uma conduta de obstetras, quase sempre de cirurgiões ou de
clínico-cirurgiões. Acompanhar um trabalho de parto sempre exigiu paciência
para "estar ao lado de" como significa a palavra obstetrícia, a
ciência ou arte do parto. Minha constatação de então foi a de que a opção
cirúrgica era uma jogada de segurança, como se diz hoje no jargão
futebolístico. No entanto, as gestantes passaram a interpretar o fato como uma
fuga da dor, um conforto no planejamento para dar à luz, para se utilizar um
palavreado que sempre achei muito brega. Por outro lado, a medicina
socializava-se também pelo nosso interior. O consultório particular passou a
conviver com empregos ou plantões médicos, que exigiam o cumprimento de
horários. Os profissionais passaram a conciliar seus diversos interesses com
partos com dia e hora marcados. Enfim, quanto mais cesarianas, principalmente
nas gestantes mais diferenciadas e de maior posse, mais se arraigava a ideia de
que se tratava do mais correto sob ponto de vista médico. Atualmente, as
cesarianas são consideradas "epidemia nacional", estando por todos os
cantos.
Muitas clientes correram de mim durante o pré-natal, porque sempre
fui contrário à mera escolha delas pela programação cirúrgica. Na referida
década e nas seguintes, além dos índices preconizados pela OMS, que procurava
cumprir, eu usava como argumento os partos da famosa Princesa Diana, casada com
o sucessor ao trono do Reino Unido, o Príncipe Charles. No primeiro, de
William, com mais de 12 horas de trabalho de parto, induzido por substância que
provoca contrações uterinas, e, dois anos depois, no de Harry, ambos partos
normais. Sem desmerecer as minhas pacientes, com muita cautela, dizia para elas
que se a princesa os suportou, se os médicos do St. Mary's Hospital assim os
conduziram, com toda a importância que filhos dela representariam - futuros
reis - não haveria motivo perigoso para se fugir dessa via natural de nascimento.
Aliás, os dois partos citados foram os primeiros da realeza inglesa num
hospital, pois, antes, os nascimentos aconteciam em dependências palacianas,
claro que com ajuda de obstetrizes e médicos.
O que está errado hoje, no Brasil, é o disparate entre os mais de
80% de cesarianas em clínicas particulares e convênios mais vantajosos,
enquanto no SUS esteja em torno de 40% - ainda assim um índice alto -
considerando-se o conforto das analgesias. A autonomia de escolha da gestante ainda
prevalece nas camadas médias ou mais ricas, mas no SUS essa equidade não se
homogeneizou. Em desfavor das cesarianas em geral, chama-se a atenção para a
extração prematura de bebês, que pode lhes causar complicações respiratórias,
com morte. É fato comprovado que a trajetória dos nascituros pelo canal de
parto, favorece a eles no amadurecimento pulmonar. Além disso, uma cirurgia
tende a ter mais riscos de infecções externas e internas, mormente nestes
tempos de infecções hospitalares por bactérias mais agressivas. No caso de
convênios e do próprio SUS, os gastos maiores num procedimento cirúrgico irão
lhes pesar mais. Ainda quero argumentar no sentido da produção de mais lixo
hospitalar que um parto cirúrgico produz em relação a um parto natural, com mais
custos ou sobrecarga ao Planeta.
Meu exemplo da saudosa e carismática princesa continua valendo, principalmente para aqueles ativistas sem argumentos, ou que defendem cesarianas para o combate à inaceitável pecha de violência obstétrica, pois, insisto, Sala de Parto nunca foi instalação deliberada para a prática de violência contra a mulher. Há um outro viés, qual seja, o aproveitamento da nova lei por parte de médicos comodistas ou interesseiros para desrespeitarem o desejo de mulheres que sonham e desejam um parto normal, induzindo-as ou obrigando-as à cesariana.
*Marco Regis é médico, foi prefeito de Muzambinho (1989/92; 2005/08) e deputado estadual-MG (1995/98; 1999/2003)