Publicado em 23/11/2018 - marco-regis-de-almeida-lima - Da Redação
Houve todo uma gritaria contra
a vinda dos colegas cubanos para participarem do Programa Mais Médicos, criado
em 2013 pela presidente Dilma Rousseff. Esses protestos foram originários do
Conselho Federal de Medicina e dos seus conselhos regionais, das associações
representativas da categoria e dos próprios profissionais. Quais foram as
atitudes e as iniciativas que essas instituições ou pessoas possam ter tomado
antes para ocupar os lugares vagos nas unidades básicas de saúde dos remotos
municípios da Amazônia e do Nordeste ou em afastadas e/ou perigosas periferias
de grandes cidades? Contrariamente, elas vinham combatendo a abertura de
faculdades de medicina havia anos, contribuindo para essa deficiência de
médicos, sempre considerando que o problema é a má distribuição deles, porque
os recém-formados vão cada vez mais buscando especializações e concentrando-se
nos maiores centros urbanos.
Na verdade, o argumento contra essa
proliferação indiscriminada de faculdades – em todas as áreas profissionais – a
partir dos governos militares, ou melhor, desde a década de 1970, tem lá
procedência porque favorecia a quantidade e não a qualidade; favorecia aos mais
ricos do que os mais pobres, pois estes corriam atrás de bolsas de estudos
quase que inexistentes, ou ao endividamento para ver um membro da família
disposto a adquirir o seu diploma. Tão real a situação que o compositor e
cantor Martinho da Vila lançou, em 1969, a música ‘O Pequeno Burguês’, um
sucesso com cujos versos muita gente daquela época, e de épocas mais à frente,
se identifica e se emociona: “Felicidade! / Passei no vestibular / Mas a
faculdade / É particular / Particular! / Ela é particular / Particular!
///Livros tão caros / Tanta taxa prá pagar / Meu dinheiro muito raro / Alguém
teve de emprestar / O meu dinheiro / Alguém teve de emprestar /// [...] Mas
felizmente / Eu consegui me formar / Mas da minha formatura / Não cheguei participar
/ Faltou dinheiro prá beca / E também pro meu anel / Nem o diretor careca /
Entregou o meu papel //// O meu papel! / O meu canudo de papel [...]”.
Na tentativa de impedir a
agilidade da implantação do programa Mais Médicos, as entidades médicas se
bateram por um dispositivo legal existente, que obriga brasileiros que se formem
em medicina no exterior, ou os próprios estrangeiros, que se submetam a um
exame – o Revalida – para se habilitarem a trabalhar em território nacional, o
qual, habitualmente, reprova a imensa maioria, quase que deixando o recado “fique
por lá”. O último, finalizado na semana passada, habilitou em torno de uns 500
médicos dos quase mil que passaram para a prova prática e de uma quantidade
inicial de mais de 10.000 profissionais. A maioria era de brasileiros formados
em países como Bolívia, Argentina, Paraguai e Cuba e um número menor de
estrangeiros de origem.
O nefasto se deu no sentido de que esta
posição corporativista das entidades médicas disseminou-se erroneamente na população,
dando margem a pessoas despreparadas, para tão complexo entendimento, que se
apossassem dos argumentos para fins políticos contra os governos petistas.
Curiosamente, a falsa ideia de profissionais ruins e mal formados recaiu
somente sobre os médicos cubanos recrutados e não nesse grande contingente que
anda prestando exames do Revalida, pois, também eles e alguns europeus vieram a
integrar o Mais Médicos sem a necessidade desse exame por imposição legal do governo,
criando mais revolta na elite médica brasileira e mais desinformação na
população. Disso se serviu a Oposição ao PT e, mais recentemente, aos fanáticos
bolsonaristas, para exploração ideológica.
Não me canso de repetir que
nem tenho passaporte, porque nunca me interessei em viajar mundo afora. Sou um
patriota inarredável. Censuro os brasileiros que ao invés de conhecerem melhor
o nosso país preferem idas e vindas, para fins de “status” e para gastarem seu
dinheiro, principalmente com futilidades na Disneylândia ou compras em Nova
York. Como deputado rejeitei uma viagem à China, com dinheiro público. Nunca
fui a Cuba.
Digo isto, porque vão me
questionar como então posso defender a formação médica em Cuba. Claro que já
obtive informações pessoais. Certa vez, ainda como deputado, comprei duas
caixas de charutos cubanos para auxiliar o filho de um amigo que lá fazia medicina,
o qual fez referências à Escola e ao curso.
Ainda agora, localizei a matéria “Saiba como é
a formação no curso de medicina em Cuba”, no “site” PEBMED, desta semana, dia
19-Nov-2018, escrita pelo Dr. Maikel Ramthun, que trabalha no Brasil, sendo
especialista em Clínica Médica, Nefrologia e Medicina Intensiva. O texto pode
ser lido na íntegra no lapso de quatro minutos. Vou pinçar apenas tópicos
essenciais: “Como há duas décadas tive a oportunidade de morar e estudar
medicina em Cuba, foram muitas as pessoas que me abordaram não só para saber a
minha opinião sobre o assunto, mas, principalmente para saber como é de fato a
medicina na ilha. No início de 2018 escrevi um livro contando algumas
experiências que vivi em Cuba. O livro não é de história, nem de política, são
apenas relatos dos cinco anos que passei lá. Sobre a medicina atual não tenho
como falar, mas, sim, como era na década de 1990”. Então, Dr. Maikel fala da falta de recursos e
tecnologia tais como velhas estruturas físicas dos prédios, dos alojamentos, do
mobiliário, de falta de internet, de falta de máquina xerográfica na
biblioteca, do uso e da reutilização de seringas de vidro, das agulhas, das
luvas. Por certo Dr. Maikel não deva saber que me formei na década de 1970 e
muitos hospitais e maternidades em que trabalhei, em Belo Horizonte e suas
cercanias, usavam estes mesmos procedimentos até anos depois. Meu pai aplicou
injeções nas casas de muzambinhenses, durante muitos anos, carregando um estojo
com seringas de vidro e agulhas, que ele fervia para reutilização, isso nos
tempos que eu fazia o curso superior. Celular “tijolão”, sem internet, adquiri
entre 1995/96. Então, Cuba não estava lá muitos anos atrasada, pois, além de
tudo, submetida a um sórdido bloqueio econômico/comercial por parte dos Estados
Unidos e de quase todo o mundo ocidental. Porém, vejamos o que ele fala do
ensino: “Preceptores muito bons. A partir do 3º ano (década de 1990) o esquema
de trabalho era muito similar ao internato no Brasil. O interno do 6º ano
revisava nossas anamneses e prescrições e passava para o médico-residente, que
também revisava. O preceptor era sempre um especialista, Ele passava visita à
beira dos leitos e discutia um por um dos casos”.
No “site” Ópera Mundi, há o
depoimento do Dr. Jésus Rafael Mora Gonzáles, graduado pela Universidade de
Ciências Médicas Sancti Espíritu, especialista em Medicina Geral Integral: “Em
Cuba, a formação tem um sentido humanista e prático, baseada na atenção
primária de saúde. O curso tem duração de seis anos. Jovens de 90 países
estudam em Cuba, a qual é Potencia Médica Mundial”.
John Kirk, PhD, catedrático e
professor de Estudos Latino-Americanos na Universidade de Dalhousie, em
Halifax, província de Nova Escócia, Canadá, fez Carta de Indicação para o
Prêmio Nobel da Paz, ao Comitê Norueguês do Nobel, em favor do Programa de
Internacionalismo de Médicos Cubanos, em 19-Jan-2015, considerando a presteza e
a dedicação dos médicos cubanos na luta contra a epidemia de ebola que
devastava o oeste da África no outono de 2014. Na carta ele cita uma declaração
do então Secretário-Geral da Organização das Nações Unidas – ONU – o
sul-coreano Ban Ki-Moon sobre os cubanos: “Eles sempre são os primeiros a
chegar e os últimos a partir”. John Kirk tece comentários sobre à presença dos
cubanos em locais atingidos por terremotos como o Chile (1960) Nicarágua (1972)
e Irã (1990), no recebimento de quase 25.000 pacientes vitimados pelo acidente
nuclear de Chernobyl, quase 100% crianças, fornecendo tratamento, alimentação e
tratamento gratuitos para pacientes e familiares. Enaltece a ELAM – Escola
Latino-Americana de Medicina – fundada em 1999 e que oferece cursos sem nenhum
custo a jovens locais e do exterior, tendo formado até a época da carta 24.486
profissionais, oriundos de 123 países. Além disso Kirk elenca dezenas de países
“em desenvolvimento”, onde professores-doutores cubanos ajudaram a implantar
escolas de medicina. Em certo ponto da sua carta ele enfatiza: “A grande mídia
do mundo industrializado tem ignorado esses fatos. A história de cooperação
médica de Cuba é algo de extraordinário. O estudo dessa humilde história tem
sido foco das minhas pesquisas nos últimos dez anos [...]”. O inteiro teor
desse documento pode ser acessado em: port.pravda.ru/news/mundo/09-08-2015/39224-medicos_cubanos-O/.
Mesmo que antigo vale a pena lê-lo. O mesmo jornal digital afirma que em
janeiro de 2015 eram51.847 profissionais de saúde cubanos, dentre doutores,
enfermeiros e promotores da saúde, atuando em 67 países sendo 50,4% de médicos.
Já tendo abusado do espaço
deste jornal e da paciência dos leitores, cito apenas mais uma declaração. Esta
foi feita em 2014, pela Dra. Margaret Chan, então Diretora-Geral da Organização
Mundial de Saúde: “Cuba tem reconhecimento mundial por sua capacidade em formar
excelentes médicos e pessoal de enfermagem, e também por sua generosidade para
com os países em desenvolvimento”.
Quero concluir com uma expressão bizarra
ou grotesca que cunhei no “facebook”, dias atrás, mais ou menos assim: países
produzem e exportam “commodities” como petróleo, cobre, ferro, soja, café. Pois
Cuba tem como “commodity” Pessoal de Saúde, recebendo por isso um bom dinheiro
que representa 10% do seu PIB – Produto Interno Bruto. Isto mais o turismo tem
ajudado a economia do país, furando em parte o mesquinho “bloqueio” dos
norte-americanos e seus capachos. Foi feito um investimento: quem tinha uma escola
médica quando Fidel Castro assumiu o poder em 1959, hoje tem dezesseis. A ilha
tem cerca de 12 milhões de habitantes e a proporção de 7,5 médicos para 1.000
habitantes, enquanto a média dos países desenvolvidos é de 3,5/1.000 e o Brasil
2,1 por 1.000 habitantes. Qualquer comentário depreciativo em contrário,
inclusive sobre “escravidão” dos médicos é jogo de palavras de jurássicos
anticomunistas, pois, na ilha caribenha o salário de um médico oscila em torno
de 60 dólares (pouco mais de 200 reais), embora tenham, como todos têm, cota de
alimentos, moradia, educação e saúde de graça, extensivo aos familiares.
Trabalhar em missões noutros países lhes propicia ganhos maiores, fazendo jus o
Governo a sua parte porque investiu nisso e com finalidade de “exportação” de
profissionais. As reclamações e as deserções são minoritárias, pois sabemos que
em qualquer lugar o ser humano é um permanente insatisfeito.
Os brasileiros anônimos,
de lugares ignotos que nunca tiveram um médico que ali residissem, as dezenas
de aldeias indígenas também assistidas, as periferias abandonadas, estes sim sentirão
falta dos cubanos e voltarão ao abandono de antigamente. Gostaria de ensiná-los
ao menos dizer na despedida: “adíos y gracias, doctor!”.
*Marco
Regis de Almeida Lima é médico, foi prefeito de Muzambinho (1989/92; 2005/08) e
deputado estadual-MG (1995/98; 1999/2003) -
marco.regis@hotmail.com