Desde
que me entendo por jornalista profissional, sempre trabalhei em televisão.
Cheguei a escrever, durante algum tempo, reportagens para a revista Terra
da Gente. Fazia reportagens para o programa e, ao mesmo tempo, escrevia
para a revista. Aliás, o impresso foi minha primeira ambição no
jornalismo. Sonhava escrever num grande jornal e, quem sabe um dia, publicar um
livro. O caminho foi desviado por acaso. Em 1988, João Nicolau Torres, que
desde sempre deu aulas de jornalismo, me apresentou à televisão em Varginha, no
sul de Minas. O que deveria ser uma visita despretensiosa se transformou num
convite inesperado e, de repente, lá estava eu realizando o sonho de minha
vida: trabalhar numa redação. Era radio-escuta, uma função que, infelizmente,
parece ter sido engolida pela instantaneidade da Internet. O radio-escuta era o
primeiro a chegar na redação. A ele cabia fazer a ronda (ligar para
polícia, bombeiros, hospitais, prefeituras, etc) e filtrar o que poderia se
transformar em pauta. Acho que fiquei dois meses como radio-escuta. Num belo
dia um repórter ficou doente, outro não apareceu para trabalhar, outro estava
de licença, outro foi abdu\ido (afinal estávamos em Varginha) e só sobrou,
adivinha quem ? o radio-escuta. O então chefe de reportagem me segurou
pelo ombro e disse:
-
Raulzão, amanhã é com você. Vai lá em Pouso Alegre e faça uma boa entrevista
com o Newtão.
- Beleza! Quem é o Newtão ?
Ele coçou a cabeça e disse:
- Newton Cardoso, pô! Governador de Minas. Conhece
não ?
Conhecia
sim. E, talvez por isso, comecei a tremer ali mesmo. Mal dormi naquela noite.
Mas me preparei como pude. Naquele tempo o santo Google ainda não havia sido
concebido. Para pesquisar era preciso fazer telefonemas, fuçar em arquivos
empoeirados de jornais, enfim, era bem diferente de teclar algumas palavras
e esperar os resultados. Fiz o que pude. Liguei para alguns
amigos e políticos, pesquisei e preparei três perguntas infalíveis e
demolidoras para o governador. Nao precisava mais do que isso. Três perguntas
desconcertantes e o mundo todo estaria comentando sobre aquele
repórter topetudo e atrevido que tinha desancado o governador truculento e
carrancudo. Foi esse o sonho que sonhei naquela noite. No dia
seguinte, lá fomos nós rumo a Pouso Alegre, cidade que tinha a honra duvidosa
de receber Newtão. Cabaço que era, imaginava que seria uma entrevista
exclusiva, só eu e o governador. Que nada. Quando chegamos, havia dezenas de
repórteres, a maioria de rádios da região, esperando por Newton Cardoso. Hoje
sei como trabalha e funciona uma boa assessoria política. Quando um governador
visita determinada região, já sabe de cor quais assuntos serão abordados, quais
repórteres deve privilegiar, quais deve evitar e, principalmente, para qual
câmera de televisão deve direcionar o olhar. Mas é claro que naquele dia isso
nem me passava pela cabeça. Por isso estranhei quando o assessor de imprensa do
governador me procurou. O diálogo foi mais ou menos assim:
- Olá, tudo bem ? Sou o assessor do governador Newton Cardoso.
Qual o seu nome ?
- Raul
- Raul de quê ?
- Raul Dias Filho.
- Ok. Olha, Raul, o governador vai chegar em poucos minutos.
Onde você acha melhor fazer a entrevista ?
- Eu acho que... bem.... deixa eu ver.... não é melhor perguntar
para os outros também ? Pode ser aqui mesmo ?
- Claro, claro. Então eu vou colocar ele aqui e você pode
comandar a coletiva, tá bão ?
- Tá.
Esse 'tá' saiu tão baixo que ele nem deve ter ouvido. Até porque
minha vontade era falar outra coisa, tipos 'comandar a coletiva ?? como assim,
cara pálida ? não entende que essa é minha primeira entrevista, logo não tenho
experiência nem capacidade para comandar nada, ainda mais com esse monte de
gente em volta ?' Mas nisso o governador já estava chegando. Veio direto em
minha direção, sorrindo, e me cumprimentou:
- 'Olá, Raul, tudo bem ? Tenho acompanhado seu trabalho, garoto!
Parabéns! Continue assim.'
Puxa vida! O governador me conhecia! Me achei, claro! Naquele
momento avaliei até a possibilidade de me candidatar a vereador em Cabo Verde.
Mas de onde, afinal, ele me conhecia, se aquela era minha primeira vez com o
microfone na mão? E tudo se clareou. Era isso, pô! O bendito
microfone tinha o logotipo da Globo. Eu estava segurando o microfone mais
cobiçado pelos políticos brasileiros na época. Por isso estava sendo bajulado.
Cair na real demorou poucos segundos. Tempo suficiente para uma inquietação
geral. Todos me olhavam, inclusive o governador, esperando pela primeira
pergunta. Mas como era a primeira vez, podia deixar que outro
repórter abrisse a coletiva. Me virei para um colega do lado e disse:
'Tudo bem, pode começar.' Ele não pensou duas vezes e lascou exatamente
uma das perguntas que eu tinha preparado. Atônito, tentei reagir, mas um foca
sofre demais numa coletiva. Ali, decididamente, não é lugar para etiqueta. Você
tem que atropelar o cara que está ao seu lado. Perguntar na frente. Mas não
estava nem um pouco preparado para isso. E o repórter fez outra das minhas
três perguntas. Já muito emputecido e um pouco desesperado, tentei reagir, mas
outro repórter saiu na frente e fez a pergunta arrasadora e 'derruba
governador' que eu tinha planejado. Newtão não se abalou. Respondeu na boa,
olhando o tempo todo para a câmera do meu cinegrafista. E toda hora que
terminava uma resposta, olhava para mim, como se dissesse 'vai meu filho, estou
esperando sua pergunta!'. Minha mão suava e tremia. Não fiz uma única pergunta. De
volta à redação, a editora me fuzilou:
- Raul, não acredito que você gravou duas fitas e não fez
nenhuma pergunta ao governador.
- Não... eu até tentei, mas não deu tempo...
- E o que é aquilo ? Você estava com frio ? O microfone tremia o
tempo todo!
- Tremia ?
- Tremia.
- É... Tava um frio danado lá.
A entrevista foi exibida. Afinal, como Newtão tinha
olhado o tempo todo para nossa câmera, tudo bem. Com um texto gravado pelo
apresentador do jornal dando a deixa para algumas falas, a entrevista foi ao ar. Nenhuma
das perguntas que eu tinha imaginado, e que foram feitas por outros repórteres,
foi exibida. Muito menos as respostas. Não interessava para a emissora.
Muito menos para o governo. Os telespectadores ? Ara, que bobagem! Era um jogo
de cartas marcadas. Mas eu não sabia disso. E fiquei com a terrível
sensação de ter feito a escolha errada. Minha primeira entrevista tinha sido um
fracasso. No dia seguinte, eu teria uma nova chance.
Por coincidência, de novo em Pouso Alegre. E, de novo, com uma figura
desconcertante. Logo eu conto como foi.
Por hoje é isso. Semana que vem tem mais. Até lá.
RAUL DIAS FILHO - O autor é jornalista e repórter especial da Record TV
E-mail: rauldiasfilho@hotmail.com