Publicado em 21/08/2020 - raul-dias-filho - Da Redação
Dizem que, de médico, gênio e louco todos nós temos um pouco. Sei lá se é verdade, mas o fato é que eu já conheci muito mais loucos do que médicos e gênios. Hoje essa categoria tão distinta, a dos loucos, é representada principalmente por malucos perigosos que saem por aí matando, estuprando e fazendo vítimas em série. Mas houve uma época em que alguns, nem um pouco perigosos, viviam por aí, livres, leves e soltos. Eram queridos, amparados e protegidos pela população. Eram os chamados ‘loucos mansos’. Pessoas com algum distúrbio leve ou doença mental não diagnosticada, incompreendidos e pouco tolerados pela família e que, por isso, preferiam a solidão das ruas. Solidão é modo de falar porque esses loucos adoráveis eram tudo, menos solitários. Conheciam quase todo mundo e eram conhecidos da mesma forma. Mas, como disse antes, os tempos eram outros. Estou falando das décadas de sessenta e setenta. Época em que as pessoas eram mais compreensivas, mais solidárias e muito mais generosas. O mais antigo desses andantes errantes que tenho lembrança era conhecido como Dito Mudo. Era um senhor negro, baixinho, andava descalço, sempre com um paletó surrado e um velho chapéu coco na cabeça. Não falava. Só resmungava e se comunicava por mímica. Andava pelo São Bartolomeu e pelos bairros rurais de Cabo Verde, sempre pedindo e quase sempre recebendo um ‘agitório’. Outro que trago na lembrança era um homem conhecido em Cabo Verde como ‘Meninão’. Tinha a cabeça pequena, quase sempre raspada com máquina zero, era forte, alto e ajudava papai na ‘linha de leite’. Explico! Papai tinha um caminhão e transportava leite para o laticínio da Polenghi. Saía todos os dias de madrugada e passava pelos sítios e fazendas recolhendo o leite em latões de cinquenta litros. Voltava com o caminhão carregado por volta do meio dia. Muitas vezes eu o acompanhava e, por conta disso, com apenas treze anos já dirigia caminhão. E não era um caminhão qualquer. Era um Mercedes ‘cara chata’, com uma direção imensa. E quem sempre nos acompanhava? O ‘meninão’! Ele adorava ir na carroceria e, como era forte, recolhia os latões mais pesados com uma facilidade espantosa. Nunca soube qual o nome verdadeiro dele. O apelido, ‘meninão’, refletia o que ele era, como agia e o que tinha na alma: um menino que cresceu e continuou criança. Porém, o mais longevo, e que andou pela região até algum tempo atrás, era conhecido como ‘Nórfo’. Não sei, mas desconfio que o nome dele era Onofre e como nós, mineiros, gostamos de simplificar e abreviar nomes e palavras, acabou ficando ‘Nórfo’. Ele tinha olhos e cabelos claros, falava sempre meio que sussurrando e estava sempre vestido com um velho paletó. Andava descalço e percorria distancias enormes com um saco nas costas onde recolhia maços de cigarro vazios, papéis e o que mais considerasse interessante. Muitas vezes pernoitava nas tulhas e paióis dos sítios que visitava. Papai e mamãe sempre o receberam e trataram com muito carinho, e Nórfo se referia a eles como ‘padrinho’ e ‘madrinha’.
Muzambinho também teve seus andantes folclóricos. Quem não se lembra de Pedro Rato? Sempre vestido no estilo boiadeiro, com chapéu grande, bigodão, cinta com fivela grande e uma sede interminável para a cachaça. Amado pelos cães, e sempre com alguns no encalço, fazia previsões para ele mesmo, para os outros e para os cães, num dialeto que só ele entendia. Ficou famosa a passagem quando, no centro de Muzambinho, bateu um vento que levou o chapéu dele pra longe. Pedro Rato então gritou bem alto, pra todo mundo ouvir: “o vento é um ar deslocado”. Fez uma pausa e completou: “que vem da PQP!” Outro personagem que fez história e deixou saudade foi o seo Pedro da rodoviária. Dizem que seo Pedro alimentou, durante toda a vida, o sonho de ser motorista de ônibus. Mas esbarrou no problema de nunca ter aprendido a dirigir. Então, se realizou como ‘chefe da rodoviária’. Sempre vestido com uniformes, que ganhava dos motoristas, seo Pedro anunciava os horários de saídas e chegadas de todos os ônibus, desde o primeiro até o último do dia. Fazia porque gostava. Nunca foi funcionário público contratado, nunca ganhou nada para fazer o que fazia. Mas dizem que sonhos não tem preço, não é? Outros que desfilaram seus sonhos e fantasias pelas ruas de Muzambinho foram Trajano, que concordava com tudo que diziam pra ele; Mário Louco, alto, sempre elegante, com ternos bem cortados e boa prosa, nem sempre compreensíveis, mas boa; Sonrisal, o baixinho valente que pegava touro à unha; e Lazarina, presença feminina que andava pela cidade inteira sempre falando sozinha. Ou com ela mesma. Muitos podem ver essas pessoas como abandonadas, errantes ou infelizes. Na verdade, por um outro ponto de vista, creio que todos tiveram sorte. Principalmente, por viver onde viveram. Em cidades onde pessoas compreensivas os compreenderam e os acolheram. Porque existe uma tragédia brasileira, pouco contada, que envolve o encarceramento e a morte de milhares de pessoas. Um episódio nefasto que teve como palco uma cidade mineira: Barbacena. Lá, durante décadas, funcionou um complexo manicomial tão grande que ficou conhecido como ‘cidade dos loucos’. Um lugar projetado para receber 200 pacientes mas que chegou, em alguns momentos, a abrigar 5 mil pessoas. Estima-se que 70% dos internados não apresentavam registro de doença mental. Eram gays, alcoólatras, mendigos, indigentes, índios, pessoas sem documentos, etc. Muitos eram internados pela própria família. Era o caso de deficientes físicos ou pessoas que tinham algum transtorno ou distúrbio, como Síndrome de Down, autismo ou dislexia. Ali, eram abandonados à própria sorte, passavam fome, frio, sofriam castigos e invariavelmente encontravam a morte. Estima se que pelo menos 60 mil pessoas morreram ali, desde a fundação do manicômio, em 1903, até o fechamento, na década de 80. É o holocausto brasileiro na sua forma mais perversa. Entende agora porque, de certa forma, pessoas como Dito Mudo, Pedro Rato, Meninão, Seo Pedro da rodoviária, Nórfo, Lazarina e tantos outros, tiveram a sorte de viver nos lugares que viveram? E de conviver com as pessoas que conviveram?
Ps: quem me atualizou sobre os ‘loucos’ adoráveis de Muzambinho foi meu bom amigo Edinho Moraes, companheiro de república e de boas aventuras nos tempos de estudantes em Campinas.
Por hoje é isso. Semana que vem tem mais. Até lá!
Raul Dias Filho
O autor é jornalista e repórter especial da Record TV