Publicado em 19/06/2020 - raul-dias-filho - Da Redação
O rádio sempre foi uma das minhas paixões. Sempre fui um ouvinte atento de programas radiofônicos. No começo, durante a infância e juventude, ouvia os programas que papai gostava de sintonizar no bom e potente rádio de pilha que ficava em cima da velha geladeira Consul na cozinha. Papai acordava muito cedo, por volta das cinco da manhã, e a primeira coisa que fazia era ligar o rádio. Normalmente num volume alto. Como a casa onde morávamos no sítio Cambuí não tinha forro no teto, os acordes das modas de viola invadiam todos os cômodos. Eu acordava e ficava debaixo das cobertas, nas manhãs geladas do Cambuí, ouvindo as modas de viola e os apresentadores. Durante algum tempo, o programa preferido das madrugadas era o do Zé Bettio. Eu gostava das músicas antigas, modão raiz mesmo, e aquele ritual durou até a estreia de um programa parecido na Rádio Rural de Muzambinho, hoje Rádio do Povo. Era o programa do Joãozinho Dureza. Se não me engano, ele tinha dois programas diários, um de manhã e um à tarde, e papai ouvia os dois. Como eram amigos, quando alguém de casa fazia aniversário, tava lá o Dureza mandando parabéns e oferecendo música em homenagem ao aniversariante. Essa rotina de ouvir o programa, tenho certeza, foi a mesma de milhares de ouvintes de toda a região. Joãozinho Dureza tinha algo que o diferenciava de outros apresentadores: no estúdio, falava e agia como se estivesse conversando na rua com algum amigo. Essa naturalidade diante dos microfones ou das câmeras é rara e faz muita diferença. Deixa fã e ídolo no mesmo patamar. Além disso, Joãozinho tinha a essência da roça. Antes de ser apresentador no rádio, foi integrante de várias duplas sertanejas. Percorreu o Brasil cantando em circos, fazendo shows em cinemas e chegou a cantar com duplas famosas, como Tonico e Tinoco. Era querido e respeitado em toda a região. Ganhou títulos de cidadão honorário em Nova Resende, Caconde, Tapiratiba, São Pedro da União, Juruaia e o de cidadão benemérito de Muzambinho. Essas informações estão no livro 'Ser sertanejo Uma opção de vida', biografia de Joãozinho Dureza escrita pelo jornalista e meu bom amigo João Nicolau Torres. Tenho comigo que essa foi a maior homenagem que Joãozinho recebeu em vida, porque apenas três meses depois do lançamento do livro, ele morreu. Faleceu no dia 23 de fevereiro de 1997, aos sessenta e nove anos de idade. Joãozinho Dureza foi grande. Por isso, pergunto: será que não passou da hora dele receber uma homenagem à altura? De repente, um busto, uma estátua ou uma rua com o nome dele? Será que a Rua Joãozinho Dureza não teria muito mais peso e significado para os muzambinhenses do que uma Rua Monza, Rua Nápoles ou Rua Cristovão Colombo? Em vez de homenagear cidades ou cidadãos que não têm absolutamente nada a ver com a história da cidade, porque não honrar aqueles que, de uma forma ou de outra, foram importantes na construção da identidade de Muzambinho? Isso se repete em praticamente todas as cidades da região. Em Cabo Verde, por exemplo, tem a Rua Bahia e a Rua Rio de Janeiro, para citar apenas duas. Ok, adoro e admiro os dois estados, mas será que não existem pessoas da própria comunidade que seriam mais merecedores da homenagem? Pode parecer bobagem, coisa pequena, mas não é. O nome de uma rua deve resgatar e perpetuar a história da própria cidade. Quando alguém, no futuro, perguntar porque essa rua tem esse nome, quem era essa pessoa, a explicação virá com detalhes do personagem, da importância dele para o município e da época em que viveu. Isso se chama resgate da história. São temas caros, que ficam como sugestões para os gestores de todos os municípios. Por 'gestores', nesse caso, quero dizer, vereadores. A não ser que estejam ocupados demais, imaginando como podem gastar o dinheiro público em projetos mirabolantes ou empregando parentes e transformando prefeituras em cabides de emprego.
Derrubando estátuas e desfazendo mitos
Emendando o assunto sobre estátuas, monumentos e homenagens, os protestos contra o assassinato de George Floyd, nos Estados Unidos, por um policial branco, se transformaram em protestos globais contra o racismo. Importantes e necessários para despertar a atenção de todos para o tratamento injusto e desigual que a população negra recebe em todos os países, especialmente o Brasil. No rastro desses protestos, algumas personalidades históricas começaram a ser questionadas, por serem racistas ou simpáticos ao racismo. Na cidade de Bolton, na Inglaterra, a estátua centenária de um mercador de escravos foi arrancada do pedestal e parou no fundo de um ribeirão que corta a cidade. Depois disso, a discussão chegou ao Brasil e, cá entre nós, temos mesmo muito o que rever em relação aos nossos 'heróis' históricos. A começar pelos bandeirantes. Retratados nos livros de história como gigantes destemidos e desbravadores, os bandeirantes foram, principalmente, traficantes de escravos. Essa era a principal ocupação deles. Formavam expedições pelo interior com o único objetivo de encontrar, perseguir e caçar índios, para que esses fossem usados como escravos pelos primeiros colonizadores portugueses. Os índios que se rebelavam eram sumariamente mortos. Aldeias inteiras foram dizimadas pelos bandeirantes. Várias nações indígenas foram desalojadas ou extintas pelas bandeiras. Os bandeirantes, chamados por muitos historiadores de genocidas, extinguiram vários grupos, como os Goyás, Janduins, os Guarulhos, Araés, os Guarani Itatim e outros, cujos nomes e culturas se perderam. No entanto, os bandeirantes são, talvez, as figuras mais homenageadas do Brasil. Dão nomes às principais rodovias do país, como Anhanguera, Bandeirantes, Raposo Tavares, Fernão Dias e outras mais. Em Santo Amaro, São Paulo, existe uma estátua de Borba Gato, feia que dói, com 13 metros de altura. Borba Gato era um criminoso foragido da justiça e só foi perdoado pela Coroa Portuguesa pela eficiência na caça e escravização dos índios. Merece a homenagem? Óbvio que não. A estátua deve ser removida? Óbvio que sim. Deve ser substituída por uma figura que mereça, realmente, a alcunha de herói. Assim como os nomes das rodovias devem ser revistos. Muitos discordam, com o argumento de que os monumentos e homenagens servem como reflexão e trazem à tona a discussão sobre o verdadeiro papel desempenhado por esses supostos 'heróis'. Para mim, reflexão é o escambau. Outros vão mais longe e dizem que, se for por esse caminho, alguns livros e filmes devem ser queimados. Isso não serve como argumento nesse caso, são discussões diferentes. Livros e filmes são obras pessoais, consumidas por quem as querem consumir. É diferente de uma estátua em praça pública, que é feita com dinheiro público e vista, apreciada e admirada por todos que passam. São homenagens! E racistas, genocidas, canalhas e párias nunca devem ser homenageados.
Direita! Esquerda! Volver!
Desde que a pandemia começou tenho lido e ouvido por aí uma previsão que, de tão repetida, virou quase uma sentença: a de que, quando tudo isso passar, as pessoas sairão dessa crise bem melhores e o mundo, consequentemente, se tornará um lugar melhor para se viver. Sinceramente, gostaria muito de acreditar nisso, mas não consigo. De uns tempos para cá, não sei se pela polarização política que dividiu o país, a convivência entre as pessoas piorou muito. Vi pessoas que sempre me pareceram generosas, conciliadoras e pacientes, mostrarem uma face intransigente, agressiva e às vezes, até violenta para defenderem seus pontos de vista. Tanto da 'direita' como da 'esquerda'. Vi muita gente discutir e até deixar grupos em redes sociais, desfazendo relacionamentos de muitos anos. Parece que a crença ou o culto a esse ou aquele político se tornou mais importante que a própria amizade. Tipos, 'se você não pensa como eu, não serve para ser meu amigo'. Fruto de uma polarização como nunca houve no país. Me lembro que na década de 70, eu era moleque ainda, a direita e esquerda no Brasil eram muito bem definidas. Existiam só dois partidos: Arena e MDB. Arena era o partido do governo militar, da direita, e MDB era oposição, da esquerda. Mesmo assim não havia esses embates tão ferozes, até porque a repressão era violenta e muitos opositores simplesmente desapareciam do mapa. Até por isso também, na época ficou meio impregnado na imaginação popular que ser oposição, ou ser esquerdista, era ser comunista. Até hoje muitos pensam assim. A esquerda, que tem nos projetos sociais e na erradicação da pobreza suas principais bandeiras, não pretende tomar propriedades privadas, assim como a direita, que preza a meritocracia, não defende a volta da escravidão. São essas falácias que confundem muitas pessoas e, incentivadas por radicais dos dois lados, incendeiam as discussões. Nesse momento seria fundamental que direita e esquerda buscassem soluções para evitar que o país naufrague e mais e mais brasileiros continuem morrendo todos os dias. Lá atrás, na história, quando surgiram os termos 'direita' e 'esquerda' os dois lados conseguiram se unir em torno de um ideal. Os termos foram criados durante a Revolução Francesa, no século XVIII. Na época, a burguesia (que vem do latim burgus, que significa 'cidade', ou seja, moradores da cidade) tentava diminuir os poderes da nobreza e do clero e, para isso, buscou o apoio dos camponeses, que formavam a classe mais pobre. Quando todos concordaram em criar uma nova Constituição, houve uma reunião onde as classes mais ricas preferiram não se misturar com os pobres e ficaram separadas, sentadas do lado direito do trono. Por isso, o lado esquerdo ficou associado à luta pelos direitos dos trabalhadores, e o lado direito ao conservadorismo e à elite francesa. Mas, juntos, eles redigiram a Constituição. Claro que com o tempo tudo isso mudou e hoje esquerda e direita não se restringem à divisão de classes sociais, mas principalmente de ideologias. O problema é que, no Brasil, essa disputa feroz e insana mexeu tanto com a cabeça das pessoas que cidadãos antes considerados 'de bem' passaram a compactuar ou defender abertamente atos de racismo, intolerância, xenofobia e homofobia. E esse é o principal motivo do meu pessimismo em relação a um mundo melhor pós pandemia. Vai haver mudanças? Sim, isso é inevitável. Mas para melhor? Duvido. O que vai acontecer é que esse cenário de crise e de incertezas que surge no horizonte vai mexer profundamente com todos. E aflorar o melhor e o pior das pessoas. A experiência de sobreviver à uma pandemia fará com que alguns se sintam indestrutíveis ou melhores do que outros. E, por isso, se tornarão ainda mais egoístas, ambiciosos e individualistas. Porém (que bom, sempre há um porém) a mesma experiência fará com que os que já são naturalmente bons fiquem ainda melhores, mais piedosos, generosos e solidários. Esses, graças a Deus, ainda são maioria. E é justamente por causa desses que, se não acredito num mundo melhor, também não acredito no caos absoluto. Os bons fazem a balança pender para o lado do bem. Infelizmente, ainda são insuficientes para transformar esse planeta tão lindo onde vivemos num lugar justo e digno para todos.
Por hoje é isso. Semana que vem a coluna pega mais leve. Vamos relembrar os bailes no clube da esquina com Os Dragões. Até lá.
Raul Dias Filho
O autor é jornalista e repórter especial da Record TV