Publicado em 14/08/2020 - raul-dias-filho - Da Redação
Ainda outro dia, numa rara saída pela cidade, vi um cartaz bem grande anunciando um ’Mutirão Virtual’. Na verdade, era uma campanha para ajudar pessoas atingidas, de alguma forma, pela pandemia. Todos sabemos que não são poucas. Mas o que chamou minha atenção foi a palavra ‘mutirão’, tão pouco usada nas cidades grandes. Aliás, é tão rara, a palavra e a ação, que duvido que os mais jovens saibam exatamente o que significa. Em outros tempos, lá atrás, os mutirões foram comuns, principalmente entre os pequenos produtores rurais. Sem recursos para contratar mão de obra, era preciso recorrer aos vizinhos e amigos para roçar um pasto, plantar uma roça ou reformar um paiol. Eu conheci a palavra mutirão, na prática, ainda criança, quando morava no São Bartolomeu. E nunca me esqueci porque acho que foi o primeiro evento que participei. Digo ‘evento’ porque lembro que reuniu muita gente, foi animado e ficou eternamente marcado na memória. O mutirão, na época, foi uma ação entre os poucos moradores do São Barto (diminutivo carinhoso só permitido para os íntimos do distrito) para reformar a casa de uma senhora, bastante idosa, que vivia sozinha. Na verdade, era um casebre, do tipo pau-a-pique. Para quem não sabe, casas de pau-a-pique são aquelas construídas com varas de madeira ou bambu trançadas, recobertas de barro e cobertas de sapê ou telha. Essa senhora a quem me referi era conhecida por todos como Sa Mariona. Idosa, vivia na velha tapera e não fazia questão de muitas visitas. Nem de fazer nem de receber. Solitária, sempre usava vestidos compridos até o pé e um um lenço grande, que cobria a cabeça e era amarrado no pescoço. Usava também uma bengala de madeira nos passeios solitários que fazia, nos fins de tarde, pelas ruas de terra do São Barto. Por ser solitária e pouco sociável, Sa Mariona era temida pelas crianças. Por isso, quando fazia alguma ‘arte’ as vezes ouvia: ‘se fizer de novo, a Sa Mariona vai te pegar’. Bom, aqui começa uma série de parênteses para explicar algumas expressões que para nós, mineiros, são simples, mas sei que são complicadas para quem é ‘estrangeiro’. Vamos lá! Que nome é esse ‘Sa Mariona’? É porque ela se chamava Maria. Era uma mulher bastante alta, para os padrões da época, então ‘Mariona’ era um aumentativo de Maria. E ‘Sa’ era um neologismo de senhora. Do mesmo jeito que ‘senhor’ vira ‘seo’, tipos Seo José, Seo Luis, Seo Pedro, senhora vira ‘Sa’, e temos então a Sa Mariona. Tão temida pelas crianças quanto estimada pelos adultos. Pois nesse dia, do mutirão, ela ficou o tempo todo em silêncio, observando o trabalho dos vários homens que se reuniram para reformar a casinha dela. Não que fosse se transformar numa casa de alvenaria. Até porque naquela época ninguém tinha dinheiro suficiente para comprar tijolos nem para a casa própria. O mutirão, organizado por meu pai, era para retirar o barro endurecido e cheio de frestas da velha casinha de pau a pique e substituí-lo por um barro mais consistente e melhor distribuído. Um trabalho duro e ao mesmo tempo, delicado, que consumiu um dia inteiro. Me lembro que, num dos intervalos, mamãe apareceu, levando quitandas que tinha feito para os homens que participavam do mutirão. Quitandas, para quem não sabe, são biscoitos, bolos e broinhas feitos em casa. Me lembro também do susto e da ‘brabeza’ que ela ficou quando me viu coberto de lama, da cabeça aos pés. Claro que ela me pegou pela mão e me levou na mesma hora para casa. Antes de ir, olhei em volta e me surpreendi ao ver Sa Mariona nos olhando, com os olhos lacrimejando e sorrindo. Nunca a tinha visto sorrir. Ela estava, claramente, muito feliz. Depois desse, participei de alguns outros mutirões quando nos mudamos para o sítio e papai também precisou de ajuda para algumas tarefas na roça. Sempre houve pessoas suficientes para vencer as empreitadas. Comemoradas, no final, com pratos bem servidos de macarrão com frango e doses generosas de cachaça. Mas o principal ingrediente sempre foi alegria e solidariedade. Hoje, não sei se os mutirões acontecem com a mesma frequência. Acho que não. As pessoas se distanciaram. Estão mais desconfiadas e menos solidárias. Uma pena, porque nesses tempos difíceis que vivemos, talvez os mais amargos que nossa geração viverá, existem muitas pessoas esperando ansiosamente por algum tipo de ajuda. E, acredite, não haverá prêmio melhor, para qualquer tipo de ajuda, se a recompensa vier na forma de um sorriso. Pode ser que venha acompanhado de uma lágrima. Como aquele, da Sa Mariona, a velhinha solitária do São Bartolomeu.
Por hoje é isso. Semana que vem tem mais. Até lá.
O autor é jornalista e repórter especial da Record TV