Publicado em 12/03/2021 - raul-dias-filho - Da Redação
Você se lembra da última vez que ouviu um causo bem contado? Deve fazer
algum tempo, porque infelizmente a pandemia ainda impede os encontros onde
essas boas histórias costumam ser contados. Aliás, antes de mais nada, é
preciso deixar claro que o causo é um verdadeiro patrimônio cultural dos
mineiros. A própria palavra é invenção nossa e tem diferenças gritantes com a
palavra ‘caso’ que deu origem a ela. ‘Caso’ é um determinado fato ou
acontecimento real, com personagens reais e que, na maioria das vezes, não tem
graça nenhuma. Já o ‘causo’ é diferente. Ele também se baseia em fatos, ou não,
e até tem personagens reais, ou não, permite alguma fantasia, às vezes até
algum absurdo, é pontuado por situações inesperadas e geralmente tem um
desfecho engraçado. Ou seja, é muito mais gostoso, construtivo e relaxante
escutar um causo do que ouvir um caso. Só que tem uma coisa: o causo tem que
ser contado por um contador nato, quase um profissional dos causos. E olha,
existem poucos assim, viu? Porque o sujeito que se atreve a contar tem que ser,
antes de tudo, autêntico. Tem que ter sotaque, graça, além de bom humor, boa
memória e a singela desfaçatez dos falsos ingênuos. É como um dom mesmo, porque
independe de estudo, classe social, vivência, etc e tal. O bom contador de
causo pode ser um analfabeto, um desconhecido, ou até um presidente da
república. Não é segredo para ninguém que Juscelino Kubitscheck e Tancredo
Neves foram grandes contadores de causos e usaram isso na política, seduzindo
aliados e adversários. Meu tio Roque é um dos melhores que conheço. Basta falar
o nome de alguma pessoa que ele conheceu pra ele se lembrar de algum causo
pitoresco ou engraçado envolvendo essa pessoa. E tio Roque sempre termina a
história com uma gargalhada gostosa e contagiante. Mas o causo, muitas vezes
surge espontaneamente. Nunca me esqueci de quando, no sítio do Cambuí, em
Muzambinho, onde moramos muitos anos, papai recebeu a visita de um velho amigo
e compadre que não encontrava há algum tempo. Os dois se sentaram na mureta da
varanda e ali ficaram, entre muita conversa, risadas e café, porque, para
tristeza de papai, o compadre dele não bebia uma cachacinha. Eu fiquei do lado,
só acompanhando a conversa. Esse compadre era desses tipos falantes,
divertidos, risonhos, exatamente o perfil do bom contador de causos. De repente
eles começaram a falar do tempo, do clima. E é bom que se diga, esse é um
assunto fundamental em qualquer prosa de mineiro. Se choveu, se vai chover, se
vai ter estiagem, se está fazendo muito calor ou frio, não importa, falar sobre
o tempo é essencial para começar, emendar ou terminar uma conversa com mineiro.
E o compadre de papai, lá pelas tantas, falou de uma chuva muito forte que
tinha caído alguns dias antes no sítio dele:
- 'Ah, seo Raul, choveu a noite inteira e foi demais da conta. E o meu
chiqueiro fica numa baixada, perto do ribeirão. A água subiu e entrou dentro do
chiqueiro. No outro dia cedo, acordei e fui lá ver e os porcos estavam todos
boiando na água. Sorte que eles sabiam nadar.'
Papai deu aquele sorrisinho de mineiro, só com o cantinho da boca, e
perguntou:
- 'Mas eles não morreram afogados?'
- 'Nada. Ficaram boiando, nadando mesmo, batendo as perninhas na água. Aí eu
fui lá, abri a porta do chiqueiro, a água escorreu e os porcos saíram andando.
E aí eu vi que o chiqueiro estava cheio de peixe que a água tinha trazido.
Tinha traíra de 4 quilos e bagre dos grandes pulando pra lá e pra cá. O chão
tava forrado de peixe! Aproveitei tudo! Comi peixe a semana inteira.'
Papai coçou a cabeça, olhou pro chão, pigarreou, como sempre fazia antes de
começar uma história, e não deixou por menos:
- 'É, compadre. Eu gosto de peixe, viu. Ali embaixo tem um ribeirão que tem
muito peixe, mas eles só gostam de uma isca: perereca, dessas pequenininhas que
tem no brejo.'
- 'Uai, mas é difícil pegar essa isca. Como é que o senhor faz pra pescar
então? Usa minhoca?'
'Não. Eu aprendi um jeito diferente. Uso um guarda chuva pra pegar as
pererecas.'
- 'Uai, da última vez, pulou tanta perereca dentro do guarda chuva que as
barbatanas não aguentaram, abriram, o guarda chuva arriou e as pererecas caíram
na agua de novo. Digo nada pro senhor, mas pelo menos 500 pererecas tinham
ali.'
Aí então foi a vez do compadre de papai tirar o chapéu, coçar a cabeça e dar
um sorrisinho de lado. Depois, continuaram conversando sobre outros assuntos e
aqueles dois causos, do chiqueiro cheio de peixes e do guarda chuva cheio de
pererecas, ficaram para trás, como se fossem absolutamente normais. E para
eles, eram mesmo. Só que não. Na verdade, funcionavam como respiros em meio à
conversa, como afagos que só dois bons companheiros se permitem trocar. Porque
causos assim só são compartilhados com quem a gente gosta e confia. E as duas
histórias, tenho certeza, os dois devem ter repetido em outras ocasiões e
divertiram muita gente. Esse é o propósito dos causos: divertir, provocar
risos, alegrar e aproximar as pessoas. E esses eram os causos que eu queria
contar pra vocês.
Por hoje é isso. Semana que vem tem mais. Até lá.
RAUL DIAS FILHO - O autor é jornalista e repórter especial da Record TV