Publicado em 19/03/2021 - raul-dias-filho - Da Redação
Ao contrário do que acontece nas ‘elites’, quando essa pergunta
pode ter sentido pejorativo, nesse caso é simplesmente para que a pessoa
descubra se conheceu ou conviveu com alguém da família. Tanto que, muitas
vezes, a identificação não acontece por causa do sobrenome, mas do nome daquele
que foi patriarca e, por algum motivo, se tornou mais conhecido na comunidade. Durante
algum tempo, ainda na adolescência, ficava intrigado quando alguém me
perguntava sobre essas origens familiares e a pessoa citava uma referência que
até então não conhecia:
“Você é filho de quem?
Do Raul
Raul Antônio Dias?
Isso.
Ah, então você é dos Quirinos”
No começo não entendia muito bem o que queria dizer aquele ‘dos
Quirinos’. Só mais tarde fui descobrir que Quirino, no caso, foi meu bisavô,
Quirino Antônio Dias, patriarca influente e bastante conhecido na região no
começo do século 20. Esta Folha já publicou um perfil de meu bisavô escrito por
meu primo Rodrigo Tardelli. Na
biografia, existem pistas sobre a origem do nome de meu bisavô. Tardelli conta
que “ele envergou, durante seus 73 anos de vida, o
nome de Quirino, deus romano da guerra e do Estado, assimilado a Rômulo, o
Fundador de tudo. Aliás, foi batizado de Quirino porque a data da festa do deus
ocorre no dia anterior ao seu nascimento”. E pistas também sobre a origem do
sobrenome: “Filho de mãe alemã e pai espanhol
(Santiago<Diago<Diaz<Dias), esta é origem do sobrenome e não os “dias”
de 24h), teve uma infância e adolescência pobres, sendo, inclusive, mascate
pelas cidades do sul de Minas Gerais. Pelo casamento, fez-se fazendeiro, um dos
maiores e mais respeitados da região”. Acontece que a história construída por
meu bisavô foi tão rica que o nome dele, Quirino, ficou mais forte que o
sobrenome. Diz a biografia que ele, “nomeado capitão da Guarda Nacional, em
poucos anos foi feito coronel. Não possuiu escravos, convencendo seu sogro,
década antes da Lei Áurea, a extinguir o instituto em seus domínios. Os
descendentes desses negros, ainda hoje, contam histórias bonitas do coronel
Quirino, que assimilou plenamente seus ancestrais nas fazendas. Durante toda
sua vida, ficou conhecido pela austeridade e pela bondade”. Ele encerra a biografia contando que ‘vô’
Quirino “tinha o hábito de mandar os serviçais matarem bois, novilhos e porcos,
cortassem as carnes e as dependurassem nas cercas da Casa Grande para que os
pobres pudessem pegar aquilo de que necessitavam. Não suportava ver
necessitados. Teve 14 filhos, azuis e dourados, como as cores do seu brasão, e
se tornou um dos maiores patriarcas do sul de Minas. Homem de coragem e
vanguarda. Muito alto, muito forte, muito bonito, muito digno. Seu passatempo,
a criação de mulas. Morreu sentado, lendo a Bíblia, na casa da fazenda, num dia
frio, em 1932. Uma de suas mulas passou o dia todo zurrando em luto, história
que sempre emocionou seus descendentes que amam os animais”. Foi assim que ‘Vô’
Quirino se tornou o patriarca e referência da família, e os filhos, netos e
descendentes se tornaram ‘Quirinos’, embora o sobrenome tenha se mantido sempre
‘Dias’. Aliás, a formação dos sobrenomes de acordo com o patriarca é comum em
vários países. Por exemplo, na Islândia, o sobrenome das pessoas é formado pelo primeiro nome do pai ou da mãe
com a terminação “son”, que significa filho, no caso dos homens, ou a
terminação “dottir”, que significa filha, no caso das mulheres. Então se o
sujeito se chama Ragnar Andersson, significa que Ragnar é filho de Anders. Se
Ragnar tiver um filho o sobrenome será Ragnarson. Na Escócia, é o prenome ‘Mc’
que tem essa função, então McDonald é filho de Donald, McFly é filho de Fly e
assim por diante. Entendeu? E, acredite, os nossos sobrenomes portugueses ou
espanhóis também têm essa origem. ‘Rodrigues’ indica, na origem, os ‘filhos de
Rodrigo’; ‘Gonçalves’ diz respeito aos ‘filhos de Gonçalo’ e ‘Dias’, filho de
Diago ou Diego. Mas ninguém é obrigado a registrar seus filhos com sobrenomes
tradicionais de família. O cientista Vital Brasil, por exemplo, que nasceu em
Campanha MG, tinha nos sobrenomes as indicações da origem de nascimento: Vital
Brasil Mineiro da Campanha. Criativo, o pai de Vital Brasil, que era caixeiro
viajante e se mudava com frequência, registrou uma filha qu nasceu em Sapucaí
como Iracema Ema do Vale do
Sapucaí e outra como Judith Parasita de Caldas, por ter nascido em Caldas. Vital Brasil, por sua vez, teve 18
filhos mas como tinha ocupações mais importantes, como aperfeiçoar o soro
antiofídico, preferiu esquecer os sobrenomes exóticos e dar a todos o sobrenome
já ilustre de Vital Brasil mesmo. E antes de terminar, devemos lembrar que
existe machismo, sim, nessa questão de sobrenomes. Porque, ó raios, o sobrenome
materno quase sempre é suprimido quando os filhos são registrados? ‘Ah, em nome
da tradição’, dirão alguns, e eu vos direi no entanto, que essa ‘tradição’, na
verdade, só privilegia os ‘varões e, muitas vezes, acaba apagando sobrenomes da
história, como se aquele ramo da árvore genealógica simplesmente deixasse de
existir por não ter tido filhos homens. Inclusive, algum tempo atrás, uma
mulher recorreu ao STJ para voltar a usar o sobrenome de solteira. A alegação
dela era justamente que o sobrenome do pai se encontra em vias de sumir, pois
os últimos familiares que o carregam estão em grave situação de saúde. E semana passada, o STJ, numa decisão inédita,
autorizou que ela refizesse os documentos e voltasse a usar o sobrenome de
solteira. Será que essa decisão significa uma mudança nos padrões de sobrenomes
no Brasil? Só o tempo dirá. No fim das contas, mais importante que os
sobrenomes são os exemplos de vida e a história que cada um constrói. Esse,
sim, é o mais importante legado que deixaremos aos nossos filhos.
Por hoje é isso. Semana que vem tem mais. Até lá.
RAUL DIAS FILHO - O autor é jornalista e repórter especial da Record TV