Publicado em 11/09/2020 - raul-dias-filho - Da Redação
A semana marcou o feriado da Independência. Não que nosso país seja realmente independente, mas deixa pra lá. Fato é que este ano esquisito, onde tudo é estranho, a Covid 19 impediu que a data fosse comemorada com os desfiles ‘cívicos’ que sempre marcaram o chamado ‘Dia da Pátria’. Se bem que, se não me engano, acho que nos tempos atuais só em Brasília tem desfile. E são paradas militares. Nas demais cidades brasileiras o 7 de setembro só é lembrado pela folga generalizada e, no litoral, pelas praias abarrotadas de gente. Mas houve um tempo, não muito distante, em que havia desfiles em praticamente todas as cidades brasileiras. Desfiles com carros alegóricos, fanfarras, discursos e fogos de artifício. Os carros alegóricos eram preparados com esmero e faziam referências à cultura local. Tratores, jipes e caminhões ricamente enfeitados percorriam lentamente toda a cidade. Nesses desfiles havia um diferencial: a fanfarra. Me lembro que a do colégio de Cabo Verde era considerada uma das melhores de Minas Gerais. E era mesmo. Era praticamente uma orquestra móvel, com músicos juvenis e amadores, que percorria ruas e avenidas da cidade. Ela tinha mais de cinquenta integrantes, ou seja, mais de cinquenta instrumentos, entre bumbos, tambores, surdos, caixas, taróis, pratos, cornetas e até tubas. E todos os integrantes estavam sempre impecavelmente uniformizados. Era famosa na região, a ponto de ser convidada para desfilar em várias cidades de Minas e do interior de São Paulo. Durante alguns anos eu toquei bumbo nessa fanfarra. Não era o instrumento mais nobre mas sem dúvida era o mais imponente. As baquetas tinham tiras de couro que as prendiam nos pulsos e permitiam alguns malabarismos. Eu gostava de cruzar as baquetas por cima do bumbo e, na volta, girá las no ar e bater forte no couro. Era um movimento que sempre impressionava as crianças. E os adultos também. Os bumbos eram os primeiros instrumentos da fanfarra e, na nossa frente, iam as balizas, que eram escolhidas entre as meninas mais bonitas do colégio. Vestidas com maiôs brilhantes e coloridos, faziam acrobacias, malabarismos e coreografias bem ensaiadas. Não foram poucas as vezes em que fizeram a turma dos bumbos se distrair e perder o compasso. Boas lembranças do tempo em que havia fanfarras, desfiles e um sentimento de orgulho pela pátria e de civismo que, graças aos desmandos de alguns políticos, também se esvaneceu. Ficou preso, perdido em algum momento do passado.
A rádio do Osvaldo - Pra quem está estranhando o título acima onde uso o artigo ‘A’ para se referir ao substantivo masculino ‘rádio’, explico logo que, nesse caso, ‘a rádio’ se trata de uma estação. Se fosse ‘o rádio’, estaríamos falando do aparelho que a gente sintoniza em casa ou no carro. Dito isso, a rádio do Osvaldo foi uma estação que transmitiu em ondas curtíssimas durante alguns anos no meu pequeno torrão natal, o São Bartolomeu. Mais do que uma rádio, ela foi, na verdade, fruto de um sonho. O sonho da vida de Osvaldo, um dos catorze filhos do seo João Ventura, um homem humilde que criou os filhos às custas de muito trabalho. Numa época em que as crianças também trabalhavam duro na roça para ajudar os pais, Osvaldo passava os dias em casa, ouvindo rádio. Ele era uma criança especial. Nasceu com um pequeno distúrbio e, desde pequeno, encontrou no rádio um companheiro fiel e inseparável. Ele passava os dias, e parte das noites também, com o radinho de pilha colado no ouvido. Por onde quer que fosse, lá estava o Osvaldo com o rádio sempre ligado. Ele não tinha uma estação preferida. Ouvia todas, mas gostava mesmo dos programas onde o locutor conversava com os ouvintes e atendia aos pedidos de músicas. E de tanto ouvir os programas, Osvaldo passou a se comportar como um locutor. No começo, como brincadeira. Na rua, se alguém pedisse pra ele oferecer uma música, Osvaldo tapava a orelha com uma das mãos, para ter um ‘retorno’ melhor, e mantinha outra mão fechada perto da boca, como se estivesse segurando um microfone. E uma transformação acontecia. Os olhos de Osvaldo brilhavam, ele abria um sorriso e falava durante muitos minutos. Falava de tudo. De como estava o clima, mandava abraços para vários amigos, reais e imaginários, e por fim oferecia a música pedida pelo ‘ouvinte’. As pessoas ficavam surpresas mas aquela ‘transformação’ não era um milagre. Era fruto de uma paixão. De tanto ouvir rádio, Osvaldo enriqueceu o vocabulário e adquiriu desenvoltura, fluência e improviso. E alimentou, cada vez mais, dia após dia, o sonho de ser um radialista. E o sonho dele foi se construindo. Comovidos com tamanha devoção, alguns moradores começaram a ajudar, com pequenas doações. E, aos poucos, a rádio de Osvaldo foi tomando forma. Primeiro, ele ganhou um velho toca discos, duas pequenas caixas de som e alguns discos de vinil. E assim fez os primeiros programas. Ele colocava tudo na calçada, em frente à casinha onde morava, aumentava o volume no máximo e ali ficava horas, oferecendo músicas e mandando muitos abraços. Depois, quando ganhou um alto falante e o instalou no alto de uma estaca de madeira, a rádio de Osvaldo começou a ser ouvida mais longe no São Bartolomeu. Mas esse ‘mais longe’ atingia somente os vizinhos mais próximos, que se acostumaram a ouvir, nos finais de tarde, os anúncios, as notícias e as músicas que Osvaldo dedicava, a quem quer que fosse. Até que um dia, ele ganhou um presente tão inesperado quanto precioso, para ele: um transmissor de rádio AM. O aparelho foi comprado por dois parentes meus, tio Roque e meu primo Mauro, e doado ao Osvaldo. Era um transmissor simples mas capaz de enviar seus sinais para TODOS os rádios do São Bartolomeu e até de alguns bairros rurais mais próximos. Não se sabe se foi Osvaldo mesmo que fez todas as instalações ou se ele teve ajuda de alguém, mas o fato é que em poucos dias a rádio dele já era sintonizada por muitos ouvintes, que foram espalhando a novidade e a frequência, boca a boca. E a audiência foi aumentando dia a dia. Entusiasmado e feliz, Osvaldo deu um nome à rádio: Capital, nome que ele mesmo criou. O estúdio, que tinha somente um microfone básico e o velho toca discos, era no quartinho dele. Do lado de fora da casa, Osvaldo escreveu em letras grandes na parede, com carvão: Rádio Capital. E daquele quartinho, para ele, tão grande como o mundo, Osvaldo comandava dois programas diários. De manhã, só com músicas sertanejas e no final da tarde, com músicas variadas. Entre uma música e outra, notícias da região, que ele ouvia antes em outros programas, e muitos anúncios. Na verdade, não existiam anunciantes, mas isso não era problema para Osvaldo. Por conta própria, ele fazia anúncios das Casas Pernambucanas; da Tapeçaria Chic, que ninguém sabia se existia realmente ou não; do Armazém do Zu e dos pequenos comércios do próprio São Bartolomeu. Os anúncios falando das ‘roupas baratas e bonitas da simpática loja da Marisa’ ou ‘dos preços camaradas da mercearia do Ramiro’ faziam sucesso na programação da rádio. E as pessoas não ouviam os programas dele por bondade ou para agradar. É que Osvaldo era realmente bom no microfone. Tinha boa memória, boa fluência e falava como se estivesse conversando com o ouvinte, com o velho e bom sotaque ‘mineirêz’. Eu me encontrei com Osvaldo algumas vezes, quando estive no São Bartolomeu. Da última vez que falamos, ele perguntou como era trabalhar na televisão, se era mais difícil que no rádio, e falou, orgulhoso, sobre a Rádio Capital e dos programas diários que comandava. Tenho absoluta certeza que Osvaldo teria feito sucesso, se tivesse tido a oportunidade numa rádio de alcance maior. Mas o tempo não permitiu. A saúde dele era frágil, e pouco mais de um ano atrás, Osvaldo não resistiu à diabetes e aos problemas cardíacos. Faleceu com 60 anos. Mas deixou uma lição valiosa: a de que não devemos desistir nunca de nossos sonhos, por mais inalcançáveis que pareçam. Deixou também as manhãs e os finais de tarde um pouco mais silenciosos no São Bartolomeu.
Por hoje é isso. Semana que vem tem mais. Até lá.
RAUL DIAS FILHO - O autor é jornalista e repórter especial da Record TV
E-mail: rauldiasfilho@hotmail.com