Publicado em 05/03/2018 - cesar-vanucci - Da Redação
"Brasil, tira as flechas do peito de meu padroeiro que São Sebastião do Rio de Janeiro pode ainda se salvar."
(Aldir Blanc, no lindíssimo "Querelas do Brasil")
Retiro do baú um artigo de anos atrás que se reveste ainda, sem que se precise dizer o motivo, de candente atualidade.
O que diferentes administrações de notória ineficiência, mafiosos e
bandoleiros de diversificados matizes, policiais despreparados ou corruptos e
políticos inescrupulosos ou desprovidos de espírito público andam aprontando,
não é de hoje, com a mui leal e heroica São Sebastião do Rio de Janeiro, só
pode ser mesmo classificado de crime de lesa-pátria.
Sou de um tempo e pertenço a uma geração que aprendeu a cultuar o Rio
como o segundo rincão natal de cada brasileiro. Mesmo daqueles patrícios que só
o conheciam à distância. Melhor dizendo, daqueles compatriotas que se
extasiavam com a soberba composição entre a Natureza e o engenho humano
refletida na cidade, sem nunca ter tido a chance de contemplar de perto as
belezas sem par da cidade de encantos mil, cidade maravilhosa, coração do
Brasil, cantada na imortal melodia de André Filho.
Comprovo em sugestiva coletânea de depoimentos anotados pelo renomado
Paulo Rónai, no esplêndido "Dicionário de Citações", que o
encantamento e a magia do Rio de Janeiro são de tempos imemoriais, de
abrangência universal e de ressonância infindável. Vejam só o que a visão
estonteante da paisagem inigualável arrancou de um versejador maior da língua,
Bocage (1765-1805): "Pus, finalmente, os pés onde murmura / o plácido
janeiro, em cuja areia / Jazia entre delícias ternura." Apolinário Porto
Alegre, nas "Brasilianas", não faz por menos: "Vi dez sólios;
oitenta e seis cidades / Vi as do engenho humano maravilhosas / Pelas artes
criadas em mil anos / Mas meus olhos não viram quem te iguale / Divina
Guanabara, em teus encantos.”
Com certeira certeza, emoção parecida arrastou Paul Claudel a dizer que
"o Rio é a única grande cidade que não conseguiu expulsar a
natureza.". Ou Genolino Amado a proclamar, deslumbrado, que os panoramas
cariocas, inundando o coração da gente, fornecem a sensação do mundo em festa.
Ou ainda Carlos Lacerda a garantir ser o Rio uma admirável síntese brasileira,
cidade onde existe a ideia de que a amizade é força essencial à vida,
arrematando assim a definição de um Rio presente na saudade e na veneração dos
brasileiros: "O que no Rio por dinheiro nenhum se consegue, com uma boa
palavra se alcança. Ou um palavrão, dito com ternura.”
Esse Rio lindíssimo, terno, de imagens que comportam tantas grandezas,
de abrasador calor humano, sinopse vibrante do sentimento nacional, parece não
existir mais. Parece estar sucumbindo diante das flechadas letais disparadas
pela violência e insensatez desabridas, estimuladas pelo despreparo e falta de
criatividade governamentais no enfrentamento da bandidagem e corrupção.
No passado, tomava-se conhecimento com sintomática frequência de casos
de conhecidos que se ligavam pela vida afora, movidos por contagiante
entusiasmo, ao sonho dourado de terminar seus dias, à hora merecida da
aposentadoria, na assim denominada cidade-maravilhosa. Que diferença de hoje,
santo padroeiro! Que diferença destes tempos ignominiosos das quadrilhas de
traficantes; das milícias corruptas de policiais; das unidades pacificadoras,
nem sempre lamentavelmente “pacificadoras”; das balas extraviadas, das rajadas
luminosas mortíferas que enchem de pavor ruas, residências, estradas, bairros
inteiros e que inspiram nas pessoas, ao reverso, a ânsia de sair à cata de
outros refúgios para terminar os dias de forma que não renda notícia dolorida
em canto de página policial.
Os acontecimentos dos tempos cariocas de hoje dizem respeito a todos os
brasileiros. O Brasil tem o direito e o dever de agir, se preciso for até com
intervenção federal. O Rio de Janeiro precisa desfazer-se de suas mazelas.
Continuar lindo, para desfrute da humanidade. É preciso que surjam pessoas
interessadas em arrancar as flechas do peito do padroeiro, para que São
Sebastião do Rio de Janeiro possa ainda se salvar, como dito na belíssima
canção de Aldir Blanc.
Em tempo: O título deste artigo foi inspirado por uma expressão que deu
título a um livro do magnífico Rubem Braga: “Ai de ti, Copacabana!”.
Cesar Vanucci - Jornalista (cantonius1@yahoo.com.br)