Publicado em 25/02/2019 - cesar-vanucci - Da Redação
“Oh, meu Deus! Que dia triste para o Brasil!” (Elza Soares)
A indesejável temporada de fatos doloridos e
impactantes, vividos em variados palcos brasileiros neste começo nada bento do
ano da graça de 2019, retirou de cena, em curto espaço de tempo, duas figuras
exponenciais da arte da comunicação voltada para grandes plateias. Ambos, os
dois, posicionados em reluzente topo na escadaria da fama, revelaram-se
insuplantáveis em suas respectivas faixas de atuação. Bibi Ferreira, a estrela
suprema, de maior fascínio, da ribalta. Ricardo Boechat, disparadamente, o mais
qualificado âncora de nosso jornalismo televisivo e radiofônico.
A queda do helicóptero, acompanhada ao vivo nos
televisores, mexeu forte com a comoção das ruas. Ruas essas já abundantemente traumatizadas
por inaudita sequência de adversidades. De todas as partes jorraram calorosas e
sinceras manifestações de pesar. Nos depoimentos dos colegas de profissão e de
um bocado de gente que partilhou das atividades cotidianas do estimado jornalista
ficou claramente evidenciada sua louvável postura como cidadão permanentemente preocupado
com os problemas e a história de seu país. A imagem que o público compôs de
Boechat foi a de um comunicador carismático, alguém provido de notável fluência
verbal, que sabia adornar com doses de bom humor as falas vigorosas alusivas a
candentes questões sociais, políticas e econômicas. Essa imagem ficou
magnificamente consolidada nas revelações trazidas a público pelo pessoal mais
próximo de seu dia a dia. O afã de Boechat, como competente ministro da palavra
social, dono de aguçado faro de repórter, na busca pela versão correta e
imparcial dos acontecimentos narrados, tornou-o defensor desassombrado de uma
trincheira em favor da democracia e liberdade de expressão. Esse cara vai fazer
baita falta!
Bibi Ferreira, sem qualquer vislumbre de dúvida a
grande dama do teatro brasileiro de seu tempo, trouxe do berço a vocação
artística. Filha do consagrado ator Procópio Ferreira e da bailarina Aida
Izquierdo, foi conduzida com apenas 24 dias da chegada ao mundo a participar,
em rapidíssima cena, que reclamava a presença de um recém-nascido, da peça
“Manhãs de sol”, de Oduvaldo Vianna, da qual seu pai era personagem central.
Sua extensa e cintilante carreira como atriz, cantora, diretora, dançarina,
autora de textos, envolveu-a, décadas a fio, numa aura de magnetismo pessoal perante
as plateias jamais igualado por qualquer outro personagem da história teatral
brasileira.
Desfrutei do privilégio de vê-la em ação, cantando
como ninguém, dançando como ninguém, pronunciando com dicção irretocável as
falas do saboroso enredo na estreia de “Alô Dolly”, espetáculo de estrondoso sucesso
da Broadway transposto para o teatro João Caetano. O mano Augusto Cesar Vanucci
(primeiro brasileiro a conquistar um “Emmy”, aí já como diretor de televisão) fazia
parte do elenco, num papel de realce na aplaudida comédia musical. Peço licença,
neste ponto, ao prezado leitor, para deixar aqui correr, abrindo um parêntese,
evocação carinhosamente nostálgica guardada na memória velha de guerra. Minha
mãe Tonica, de saudosa lembrança, marcou presença cativa no teatro. Assistiu
praticamente a todas as encenações de “Dolly”. Tornou-se amiga fraternal da
turma responsável pela encenação. Acabou decorando todas as falas, acordes e
letras do musical. Seja anotado, também de passagem, um comentário que ganhou
alarde na época: o time dos intérpretes brasileiros, Bibi à frente, com seu
magistral desempenho, aplicou goleada, do tipo seleção brasileira em tempos de
outrora e seleção alemã em tempos de agora, no elenco formado pelos astros de
Hollywood da encenação original.
Retorno à
imensa, extraordinária, deslumbrante Bibi Ferreira para registrar que aplaudi,
de corpo presente, quase todos os espetáculos por ela protagonizados. Revejo-a em
inesquecíveis performances, interpretando lindamente melodias e flagrantes da
vida de Edith Piaf e de Amália Rodrigues. Revejo-a no emocionante “Gota d’água”,
em “Minha querida dama”, outro musical de origem estadunidense. Conservo na retina, bem delineadas, cenas dos
magníficos desempenhos em que emprestou a voz fabulosa a melodias dos repertórios
de Sinatra e Gardel.
Estive com Bibi, nos bastidores do Palácio das Artes,
quando ela veio a Belo Horizonte, anos atrás, para dirigir “Carmen de Bizet”. Enaltecendo-lhe
a atuação, estampei neste mesmo espaço, na ocasião, um comentário intitulado
“Carmen, de Bibizet”. No papo coloquial com ela, então, mantido, expressei-lhe
o quanto nos sensibilizou, aos familiares de Augusto Cesar Vanucci, o gesto
cativante que gravou sua presença no velório de meu irmão. Reportava-me à
circunstância de que ela e a esplêndida cantora Alcione permaneceram horas
seguidas ao lado do ataúde, até a cerimônia do sepultamento, numa inequívoca
demonstração de carinho e apreço ao fraternal companheiro de lida artística escalado
para “partir primeiro”.
Com certeira certeza, Elza Soares falou por todo
mundo, ao extravasar sua consternação pela saída de cena da primeira grande dama
do teatro brasileiro: “Oh meu Deus! Que dia triste para o Brasil! Brilhe
sempre, estrela Bibi.”
Cesar Vanucci - Jornalista
(cantonius1@yahoo.com.br)