Publicado em 10/06/2019 - cesar-vanucci - Da Redação
“Nunca soube que Nilo Peçanha era negro!” (Senador José Serra, governador de São Paulo à época da exposição dos painéis de rua retratando personagens negros de realce na vida brasileira)
Aludimos
aqui, ainda recentemente, ao vergonhoso e usual procedimento adotado em certos
setores, com a indesculpável complacência de alguns órgãos representativos da
atividade intelectual, de se adulterar publicamente a condição étnica de
notáveis personagens negros da cultura brasileira. Essa persistente e
deploravelmente enganosa disposição de “maquiamento embranquecedor” – chamemos
assim – de expoentes da inteligência dotados de cútis negra – “negra como a
noite, negra como as profundezas d’África”, retornando à fala do poeta (negro) Langston Hughes – constitui manifestação de preconceito racial indisfarçável,
deslavado e indesculpável. Algo em estridente dissonância com os preceitos
democráticos e humanísticos que recobrem de dignidade a caminhada do ser
humano.
Como então sublinhamos no comentário de dias atrás, figuras
da expressão de um Machado de Assis, de Lima Barreto, de Cruz e Souza, citando apenas
alguns nomes estelares no cenário cultural de todos os tempos, são
habitualmente retratadas, em imagens caprichosamente retocadas, como “gente
branca”. As coisas assim processadas derivam da estrábica concepção de que essa
deformação de imagem serviria para “enriquecer-lhes” as biografias, quando, na
realidade, muito pelo contrário, serve apenas para aviltar-lhes a memória.
Retomando hoje o desconcertante tema, anotamos outros nomes mais
à lista de personalidades negras eminentes que se viram envolvidos em registros
históricos inconsistentes no que diz respeito à sua autêntica origem racial. Vem
a calhar, a propósito, informação de que em São Paulo, no final da década
passada, em promoção das Secretarias de Cultura do Estado e da Capital
bandeirante, ao ensejo da celebração do “Dia da Consciência Negra”, painéis medindo
5 metros de altura, projetando retratos de afrodescendentes ilustres, foram
afixados nas fachadas de inúmeros prédios públicos e privados. Entre eles, o “Theatro
Municipal”. A iniciativa representou, segundo seus idealizadores, contribuição
no sentido de resgatar a história de cidadãos negros proeminentes de certa
forma “embranquecidos” em ações de flagrante impostura social.
Encarregado, naquela ocasião, da pesquisa que compôs 100
nomes de brasileiros negros com participação valiosa no desenvolvimento do país,
o antropólogo Dagoberto José Fonseca, professor da Universidade Estadual de SP,
explicou que existe, na comunidade brasileira, uma certa inclinação, sem dúvida
censurável, de promover “uma espécie de branqueamento da cultura negra”. A
pesquisa proporcionou revelações que deixaram surpreendidos não poucos
segmentos comunitários. Muita gente, por exemplo, ignorava – e até hoje isso continua
acontecendo – que a notável compositora Chiquinha Gonzaga, autora, entre outras
belas canções, da célebre marchinha “Ó, abre alas!”, era negra. Num seriado
televisivo que alcançou recordes de audiência, o papel de Chiquinha, que também
se notabilizou pela corajosa postura em defesa das mulheres contra a opressão
machista dominante em seu tempo, foi vivido por Regina Duarte, atriz branca de
grande prestígio popular a ponto de se tornar conhecida como “namoradinha do
Brasil”. Da lista em questão faz parte também alguém que, vivendo entre 1867 e
1924, militante político de destaque, chegou a ocupar a própria Presidência da
República, Nilo Peçanha.
Mais sugestivos exemplos: é do desconhecimento público que o
fundador da Escola Politécnica de São Paulo, o engenheiro de renome nacional Teodoro
Sampaio, era um afrodescendente. E, ainda, que uma mulher negra, Virginia Leone
Bicudo, fundou a Sociedade Brasileira de Psicanálise.
A divulgação dos 20 personagens negros, de presença cintilante
no processo de construção do desenvolvimento cultural, escolhidos para figurar
nos painéis mostrados nas ruas da maior cidade brasileira, provocou, fácil
deduzir, reações de surpresa. Surpresas derivadas, obviamente, dos efeitos
deixados no espírito popular pelo contexto social preconceituoso dos fatos
acima narrados.
Eis a relação dos 20 patrícios retratados nos painéis: Clara
Nunes, cantora; Carolina de Jesus, escritora; Virginia Leone Bicudo,
psicanalista; Gonçalves Dias, poeta; Mário de Andrade, escritor; Milton Santos,
geógrafo; Cruz e Souza, poeta; Carlos Gomes, compositor; Lima Barreto,
escritor; Chiquinha Gonzaga, compositora; Luiz Gama, advogado; José do
Patrocínio, jornalista; Leônidas da Silva, craque de futebol; Juliano Moreira,
médico; André Rebouças, engenheiro; Teodoro Sampaio, engenheiro; Machado de
Assis, escritor; Castro Alves, poeta; Geraldo Filme, músico; Nilo Peçanha,
político.
Cesar Vanucci - Jornalista
(cantonius1@yahoo.com.br)