Publicado em 31/01/2019 - geral - Da Redação
As repórteres Elvira Lobato e Ana Terra Athayde mostraram no final
do ano passado, no Observatório
da Imprensa, as dificuldades do jornalismo local de Mariana
para cobrir os impactos da tragédia ambiental do rompimento da Barragem do
Fundão, em 2015. A reportagem foi parte da segunda fase do projeto Atlas da Notícia —
conteúdo sobre a imprensa no país. O novo crime ambiental em Brumadinho motiva
um retorno às reportagens , principalmente para buscar nelas não só erros a
serem evitados, como reflexões sobre o alcance do jornalismo diante de
tragédias que se repetem e trazem as marcas da impunidade e da injustiça.
O ponto
principal no relato das jornalistas é a tensão entre a imprensa local — acusada
de relativizar a tragédia ecológica e humana diante de forças econômicas e
políticas — e a grande mídia — insensível ao poder da mineração no dia a dia
dessas cidades. O primeiro parágrafo do texto de Elvira dá a dimensão do
problema .“O município de Mariana sofreu duas tragédias simultâneas: o
rompimento da Barragem de Fundão, em 5 de novembro de 2015 — que matou 19
pessoas, dizimou povoados e deixou um rastro de destruição até a foz do Rio
Doce, no Espírito Santo —, e a explosão do desemprego pela paralisação das
atividades da Samarco”.
Os
jornalistas locais, por sua vez, argumentaram que a mídia nacional e
internacional ignorou os índices de desemprego na cidade — o dobro da média
nacional — e o impacto econômico nas regiões atingidas. O entendimento é de que
a imprensa nacional agravou a crise econômica. A insensibilidade para o
cotidiano dos moradores — principalmente depois que se esgotou o tema factual
do rompimento da barragem — contribuiu para deixar as coisas como estão. As
autoridades afrouxam a vigilância até que a tragédia anunciada se repetiu. O
jornalismo local, envolto no poder econômico da mineração, não consegue fazer
muito e se depara com o aumento crescente das filas de desempregados, como
aconteceu em Mariana.
O
rompimento da barragem em Brumadinho desmascara todos os descasos dos poderes
públicos e privados. É função do jornalismo cobrar transparência e
responsabilidade, mas isso não pode ser feito de maneira desconectada das
demandas dos moradores da região. Fatos sociais são complexos e há décadas a
mineração deixa suas marcas destrutivas na paisagem das montanhas, além de ser
a principal fonte de renda dos municípios.
José
Miguel Wisnik num livro recente — “Maquinação do Mundo: Drummond e a Mineração”
(Cia das Letras, 2018) — reconstitui a influência da intervenção drástica da
atividade na geografia da Itabira natal de Carlos Drummond de Andrade e seu
impacto na produção do poeta.
Em “A
montanha Pulverizada”, publicado em 1973, o poeta descreve a destruição do pico
do Cauê: “chego à sacada e vejo a minha serra / a serra de meu pai e de meu
avô, / de todos os Andrades que passaram e passarão, / a serra que não passa /
Era coisa de índios e a tomamos / para enfeitar e presidir a vida / neste vale
soturno onde a riqueza / maior é sua vista e contemplá-la. / De longe nos
revela o perfil mais grave / A cada volta de caminho aponta / Uma forma de ser,
em ferro, eterna, e sopra eternidade na fluência / Esta manhã acordo e não a
encontro / Britada em bilhões de lascas / deslizando em correia transportadora
/ entupindo 150 vagões no trem monstro de 5 locomotivas / o trem maior do mundo
— tomem nota — foge minha serra, vai / deixando no meu corpo e na paisagem /
mísero pó de ferro, e este não passa.”
Wisnik
percebe em Drummond a força da história mundial o na pequena cidade “queimando
e se desnudando ali”. A serra retirada da paisagem revela a abertura para a
máquina do mundo e a impossibilidade da permanência. “Como o sertão para
Guimarães Rosa a Itabira de Drummond também é o mundo — só que , nesse caso, um
mundo em que o mundo vai engolindo o mundo, movido pela geoeconomia e pela
tecnociência”, escreve. A arte poética de Drummond é, em certo sentido, o
encontro entre a província e o mundo atravessado pela presença da exploração
mineral que tem imposto custos altos aos moradores da região. Das paisagens
retiradas da geografia ao mar de lama que corre destruindo vidas.
São esses
moradores que precisam ter um protagonismo narrativo que ajude a encontrar
soluções a partir das demandas reais. O jornalismo não pode abandonar a pauta
tão logo a situação adquira ares de normalidade. Uma das principais conquistas
do ambiente digital é a capacidade dialógica. Os recursos tecnológicos permitem
uma abertura participativa aos habitantes desses lugares para que conduzam o
debate.
A região de Brumadinho foi transformada, nos últimos anos, pela
existência do Inhotim, grande empreendimento de arte contemporânea financiado
pela indústria da mineração como anota Silas Martí na Folha de S.Paulo (26.01).”Paz,
o dono do Inhotim, fez sua fortuna explorando essa mesma indústria e financiou
a construção de peças faraônicas que enquadravam a violência contra o meio
ambiente”. A destruição deixou sua marca de representação artística para se
inscrever no real histórico. Como reconstruir a vida a partir dessa
contradição?
No relato sobre
Mariana, Elvira Lobato e Ana Terra Athayde identificam um jornal inovador
surgido da experiência trágica do crime ambiental. A Sirene, publicação
custeada pela arquidiocese, é produzida por moradores afetados pelo rompimento
da Barragem do Fundão. “O uso das doações para este fim foi decidido pelos
próprios atingidos e aprovado pelo Ministério Público”. Os textos são assinados
tanto pelos jornalistas quanto pelos entrevistados: pessoas que tiveram suas
vidas transformadas pela ruptura da barragem. Na vídeo reportagem de
Ana Terra Athayde, os jornalistas falam de dificuldades de sustentação
financeira do projeto e reconhecem a riqueza da experiência que poderia ser
estendida à outras realidades.
O jornal laboratório do curso de jornalismo da Universidade
Federal de Ouro Preto, Lampião, também buscou o ponto de vista dos atingidos
pela tragédia do Fundão. Num artigo em
que avaliam a experiência, os professores André Luiz Carvalho e Karina Gomes
Barbosa escrevem: “Uma das tarefas do jornalismo diante de um acontecimento
como o de Mariana é tentar construir a narrativa (ou as narrativas) desse
evento traumático, experienciado e testemunhado pelas pessoas atingidas
diretamente por ele. A importância de tal narrativa nos aproxima da acepção de
Beatriz Sarlo, para quem “não há testemunho sem experiência, mas tampouco há
experiência sem narração”.
A pauta
sobre os impactos da mineração no Brasil precisa ser aprofundada. Os
acontecimentos trágicos e a poesia tem nos ensinado muito sobre as desvantagens
dessa exploração, teremos, mais do que nunca, de colocar pesos e medidas na
balança. Há muito trabalho para o jornalismo e ele diz respeito às relações
entre as cidades de minas e a máquina do mundo.
Pedro Varoni é jornalista, editor do
Observatório da Imprensa e pesquisador em pós doutorado do Departamento de
Informação e Cultura da ECA/USP.