A maldição da Carta

Publicado em 06/10/2017 - marco-regis-de-almeida-lima - Da Redação

A maldição da Carta

Sem dúvida alguma, o massacre de Las Vegas, na semana que passou, foi o acontecimento que polarizou a atenção mundial. Sob a paranóia de atentados terroristas patrocinados ou vinculados ao impiedoso Estado Islâmico, que têm atingido nos últimos tempos países europeus e o próprio Estados Unidos da América – EUA –, assim fluíram as primeiras horas desse tiroteio que matou 59 pessoas e deixou mais de cinco centenas de feridos. São surpreendentes e chocantes as cenas produzidas nos exatos instantes em que se ouvem os tiros em série de arma automática, enquanto um cantor se apresentava num festival ‘country’ na capital americana da jogatina e da luxúria.

                Embora reivindicado pelos islâmicos, os primeiros dias de investigação afastam essa possibilidade, ao que parece um chamamento oportunista. A inteligência e a perícia desenvolvidas nessas situações, nos diversos países, têm demonstrado eficiência nas identificações de autoria, como ocorreu no atentado da Maratona de Boston, no atropelamento de Nice na França, no Mercado de Natal em Berlim, na Ponte de Westminster em Londres, na Avenida Las Ramblas de Barcelona, e outros.

                Neste caso de Vegas, Stephen Paddock, o atirador do hotel, encontrado morto, era um contador aposentado, de origem norteamericana, 64 anos, sem antecedentes criminais pessoais e sem ligações aparentes com organizações políticas ou religiosas, apenas um jogador inveterado daqueles cassinos. Consta que seu pai foi um esperto assaltante de bancos, tendo sido os filhos criados pela mãe, que dele era separada.

               A se confirmarem os rumos preliminares desta investigação, estaremos diante de mais um inexplicável e repetitivo caso de um ‘lobo solitário’ americano, sem vinculação com organizações terroristas, que aparece em cena, atirando a esmo para matar quem quer que esteja à sua frente, por motivações íntimas, a maioria por desequilíbrio psicológico.

               Se já é deplorável esse terrorismo medíocre e sem nexo de matanças pessoais com a utilização de mecanismos de atropelamento, de esfaqueamento ou tiroteio, mais lamentável torna-se essa tradição americana de massacres individuais em espaços públicos. Disso advém o constante questionamento da facilidade com que as pessoas estadunidenses têm acesso às armas de fogo. Basta ser um cidadão maior de idade, portando um simples e vago atestado de sanidade mental, além de grana no bolso, para que compre armamentos dos menos aos mais letais.

               Lembremos de que o ex-Presidente Barack Obama passou os oito anos de seus dois mandatos tentando lidar com esse vespeiro. De modo geral, o partido dele, o Democrata, é mais arejado e sensível às questões sociais e dos direitos humanos, um grupamento político mais alinhado com a esquerda democrática mundial. Em contraposição, os republicanos são conservadores e estão mais vinculados à indústria armamentista, sobretudo na defesa do comércio das armas tal como é praticado. Nesta 4ª feira (4) parlamentares democratas dos EUA se reuniram mais uma vez, em ato público, pedindo severas restrições à venda de armas para civis.

               Na verdade, a posse e o porte de armas nos EUA, conforme pesquisas que fizemos junto à Wikipédia, ao brasilescola.uol.com.br/historia-da-america e ao Almanaque Abril (in Países/Estados Unidos),  se devem à 2ª Emenda,  dentre as dez primeiras feitas à Constituição dos EUA e chamadas de Carta de Direitos dos Estados Unidos da América (Bill of Rights), que “oferecem proteções específicas de liberdade individual e de justiça, além de restringir os poderes do governo”. Textualmente, assim está expresso na 2ª Emenda: “Sendo necessária à segurança de um Estado livre a existência de uma milícia bem organizada e o direito ao povo de possuir e usar armas não poderá ser infringido”.

               Desde a época da independência, “os Estados Unidos aprovaram a sua primeira, e até hoje, única constituição”. Desde então lhe foram acrescidas 27 emendas, apenas uma delas revogada. Comparemos com o Brasil que já teve 8 constituições, sendo que nossa última foi promulgada em 5 de outubro de 1988, podendo ser atualmente considerada uma colcha de retalhos, pois foi emendada mais de 50 vezes e sempre aparece um novo remendo. Mais antiga do que a Carta Maior dos EUA é a Constituição da minúscula e a mais antiga república – San Marino – com 61 Km2, encravada em território italiano, vigente desde 1600 dC.

               Voltando à Emenda nº 2 da Carta americana, responsável pela obsessão dos americanos do norte de possuírem e portarem armas, consequentemente pelos desvarios dos massacres que lá acontecem, seria fácil deduzirmos, embora leigos no Direito, que ela fez parte de um contexto histórico da luta das 13 colônias para se livrarem do jugo inglês. Pelo menos há um século, juristas e políticos lhe dão diferentes interpretações. Segundo uma das opiniões que colhi “a questão central estaria no direito ao porte ser extensivo aos cidadãos individuais ou apenas às milícias – atuais exércitos nacionais”.

               Enquanto perduram infrutíferas discussões, a indústria e os lobistas das armas estão pouco se lixando com as vítimas dos constantes massacres. Há informações estatísticas de que os EUA registraram, até há pouco, 273 tiroteios em 275 dias, considerando-se que por tiroteio entende-se um número mínimo de 4 vítimas. Nada que cause inveja a nós brasileiros, porque a nossa violência já produz cifras assustadoras de 60 mil homicídios por ano e número quase igual de mortos em acidentes de trânsito.

                  Se no Brasil falamos em milhares de homicídios devido à pobreza, miséria e drogas, além das vítimas do machismo e das minorias discriminadas, lá nos Estados Unidos nós estamos contabilizando somente as vítimas de chacinas pela sandice humana, fruto possível da tal Emenda nº 2.  Para um país que já foi tão religioso como lá, hoje impera o deus das Cifra$, onde o vil metal e os dólares valem mais que os valores morais e éticos. Dá para se imaginar que sobre os americanos pesa a maldição da Carta – do “Bill of Rights”!

 *Marco Regis é médico, foi prefeito de Muzambinho (1989/92; 2005/08) e deputado estadual-MG (1995/98; 1999/2003) – marco.regis@hotmail.com