ARTIGO ESPECIAL: Das cinzas de Santa Maria

Publicado em 01/02/2013 e atualizado em 11/11/2014 - marco-regis-de-almeida-lima - Marco Regis

Do trágico acontecimento do último final de semana, na cidade gaúcha de Santa Maria, conhecida pelo seu esplendor educacional e cultural, trago observações e questionamentos a serem compartilhados com os nossos leitores. Afinal de contas somos nós o “grande público” dos espectadores de canais abertos de televisão, ouvintes de emissoras de rádio, leitores dos grandes jornais e navegadores da internet, a quem se dirigem todos esses equipamentos midiáticos.

 

Mas, durante as décadas da minha vida,nunca quis ficar massificado numa legião amorfa de receptores da informação. Sempre me comportei como um ‘ombudsman‘ anônimo à semelhança daqueles que exercem o papel de ouvidores e críticos dos seus próprios órgãos de imprensa. Todavia, sempre almejei muito mais do que isso:que quase todos nós do grande público não fôssemos meros digestores da informação e nos tornássemos ‘ombudsmen’, sim, no plural da palavra sueca ‘ombuds’  mais a inglesa ‘men’,  flexionada para o plural.

Quando liguei o aparelho de TV, na manhã do último domingo, o sol já estava bem alto no céu, mesmo que escondido por entre nuvens anunciadoras de chuva. No habitual clique do controle remoto captei uma rápida imagem que falava de um incêndio numa casa noturna. Era a Rede Bandeirantes. Ela ia para um intervalo comercial e eu me apressei em comentar em casa: “parece que tem mortos”. Passei para a Rede Globo, mas era o programa Esporte Espetacular. Fui, então, para a Record News e logo fui deparando com imagens semelhantes às da primeira, como se fossem feitas por amadores, depois vindo a saber que eram provenientes da internet, de fato postadas por amadores. Mas a legenda era absurdamente acima da minha imaginação: “245 mortos em incêndio em boate em Samta Maria/RS”. Perplexo, eu iniciava naquele instante uma jornada de olhos e ouvidos fixos na televisão, por tantas horas, que somente iria ser desfeita no início da próxima madrugada. Um verdadeiro plantão de notícias.  Cheguei a deixar de lado atéo futebol dos campeonatos estaduais, recém-iniciados, fato este  excepcional na minha vida, nestes últimos anos,  pois sempre brinco com as pessoas que o horário do futebol domingueiro me é sagrado, como se fosse a minha igreja dominical.

Dessa situação inicial, veio a minha primeira observação em relação às redes de TV abertas, porque, a partir de então, por horas a fio, não me desgrudeida tela do meu aparelho, buscando e passeando pelos mais conhecidos canais. Enquanto a Record repetia exaustivamente as mesmas cenas, seu áudio se movimentava, poisa todo momento entrava no ar o repórter da afiliada de Porto Alegre, que ainda estava na expectativa da chegada das primeiras vítimas a serem transferidas para a Capital gaúcha. Nesse ínterim, também retornava à Band, onde José Luís Datena segurava a emissora no ar com a sua conhecida competência, mas com a costumeira precipitação e generalização de atribuir todos os malefícios que acontecem aos políticos, enquanto exibia as mesmas imagens que eu via na Record, supostamente oriundas da internet.

Domingo seguia em frente, com a Record News sem arredar o noticiário de Santa Maria. O SBT – Sistema Brasileiro de Televisão -num gesto de solidariedade para com as vítimas sacrificava toda a sua programação popular do domingo, inclusive comerciais, transformando o horário dos apresentadores Portioli e Eliana, em cobertura da situação causada pelo incêndio da casa noturna, improvisando a ambos como verdadeiros âncoras, que fizeram jus a esta condição, fazendo   entrevistas telefônicas, principalmente com sobreviventes e emocionando-se com elas por inúmeras vezes.  Enquanto isso,a Rede Globo dava uma má impressão de estar insensível,pois exibia os comediantes MarciusMelhem e Leandro Hassum e, ainda, antes do futebol das dezessete horas, um interminável filme-desenho do Urso Panda Kung Fu, desmotivando a gente de nela estar sintonizado, pois nesse constante clicar a gente nela nada encontrava  sobre a tragédia.

Mais cedo,pude escutar no Datena,por telefone, o primeiro depoimento de uma sobrevivente, que prendia a atenção da gente ao relatar como conseguira escapar daquele inferno. Também, a primeira manifestação de uma autoridade municipal de Santa Maria, Sr.Mânica, fluente e inteligente Secretário de Governo,dando a versão dos acontecimentos, mas demonstrando a organização da cidade dentro dos principais objetivos daquelas primeiras horas, que eram: socorro aos feridos, identificação dos mortos e acolhimento aos familiares de mortos e feridos, onde a municipalidade tratavada questão hospitalar local, bem servida por seis hospitais,  nos leitos providenciados em outras localidades, principalmente em Porto Alegre, contando com o governo estadual no levantamento dessas vagas e com a Base Aérea da Aeronáutica, sediada no município, no transporte dos feridos. Ainda falavaem atendimento multidisciplinar aos familiares das vítimas por meio de médicos, pessoal de enfermagem em todos os níveis,psicólogos e assistentes sociais. Esta elevada organização diante do caos instalado, percebida por mim na entrevista telefônica dada pelo Secretário municipal ao Datena, foi exaltada pela âncora do Bom Dia Brasil da Globo,  Ana Luíza, na manhã do dia seguinte, segunda feira. A propósito, foi nessa ocasião que a Globo parece ter despertado, com atraso, para a repercussão da catástrofe, Redimiu-se, a partir de então, fazendo uma cobertura aprofundada, demonstrando a sua potência jornalística, com todo o seu elenco principal baseando-se em solo sul-riograndense,onde chegou na noite de domingo,  a exemplo de William Boner, Burnier, Sandra Anenberg, César Menezes, Cristiane Pelajo e a já citada Ana Luíza, deixando em segundo plano uma repórter local, que se mostrou sofrível nas intervenções do dia anterior.

Concluindo minhas observações, sobre o comportamento do noticiário televisivo ou nos jornais impressos e virtuais, devo ressaltar a pressa havida no sentido de incriminar os causadores da tragédia. Não há mesmo como se falar em fatalidade, pois, desde os primeiros depoimentos de sobreviventes se percebia uma somatória de causas, tais como a provável superlotação da casa noturna, a irresponsabilidade da banda no uso de pirotecnia num ambiente fechado, quente e lotado e a estrutura física afunilando em uma única saída, que era a mesma de entrada. Outro fator seria o revestimento do isolamento acústico, que teria usado material altamente sensível ao fogo. Desses fatores, alguns são de responsabilidade do Corpo de Bombeiros, em cuja corporação tramitava pedido de renovação do alvará de segurança. Por fim, a Prefeitura do município, que expede, anualmente, a licença de funcionamento mediante vistoria sanitária e o documento dos bombeiros militares. Neste caso, refuto a veemência com que,em programa da Record, na tarde do dia seguinte, o ‘expert’ em defesa do consumidor e político, Celso Russomano -  também opinião de parte da grande mídia - acusava o prefeito Schimmer de não haver fechado a boate desde que o alvará dos bombeiros estava vencido desde agosto do ano passado. Não é habitual que prefeituras fiscalizem os inumeráveis estabelecimentos, que passam por consultórios médicos, odontológicos, academias, bares, restaurantes, clubes, boates e outros, após a liberação anual do alvará de funcionamento. A não ser que haja alguma denúncia, ou, no caso, da formal comunicação de irregularidade por parte do Corpo de Bombeiros. Pessoas acusam levianamente, como acusou um artista de TV no programa Encontro do dia seguinte,de Fátima Bernardes, na Globo,  que o prefeitosantamariense nem ao menos dera satisfação sobre o caso, pois ele,  certamente, bitolado em uma única emissora não o viu em outras como eu vi. O mais correto para todos nós é aguardar as conclusões do inquérito, rapidamente aberto e em andamento, sob a responsabilidade da Polícia Civil do Rio Grande do Sul e acompanhamento da Promotoria local.

No mesmo diapasão,houve repercussão internacional, onde, inclusive se questiona a segurança daqueles que aqui aportarão em grandes eventos esportivos como a Copa das Confederações, a Copa do Mundo de Futebol e as Olimpíadas. Parte da imprensa internacional noticiou o infausto acontecimento com ar de menosprezo ao Brasil, esquecendo-se, por exemplo, os norteamericanos dos rotineiros massacres que ocorrem no seu país e, até mesmo, da morte de mais de cem pessoas, em RhodeIslands, em 2003, em situação idêntica a Santa Maria. Outros trágicos incêndios aconteceram, nos últimos dez anos, na China, Rússia e Argentina, o que demonstra que desastres por negligência, omissão e falhas tanto do poder público como da sociedade não são defeitos somente dos brasileiros.

Finalmente, devo registrar que o momento é de dor e de solidariedade e não quero esconder que muitas vezes chorei pelas vítimas de Santa Maria, pelas famílias e pelo seu povo porque ninguém fica insensível ao horror de uma tragédia. Tudo que eu escrevesse sobre ela seria redundância pelo quefoi exposto e transmitido com  nitidez e intensidade pelos meios de comunicação. O que não podemos é engolir as ilações e as manipulações de algunspor conta da comoção que nesta hora toma conta de todos nós. Observem que houve críticas até sobre o gesto humanitário, altruísta e de estadista da presidente Dilma Roussef de abandonar, no último dia, compromissos com outros chefes de estado ou de governo latino americanose europeus, no Chile, a fim de ir para junto do seu povo em Santa Maria. Nesta hora,precisamos ser solidários, levando o  conforto aos que sofrem na carne e no espírito na traumatizada cidade de Santa Maria, ao menos derramando uma lágrima ou orando por eles.

 

Dr. Marco Regis de Almeida Lima - O autor é médico, ex-prefeito de Muzambinho (1989/92; 2005/08) e ex-deputado estadual-MG (1995/99; l999/2003)