CONTROVÉRSIAS NA SAÚDE

Publicado em 26/02/2015 - marco-regis-de-almeida-lima - Da Redação

CONTROVÉRSIAS NA SAÚDE

Embora os tempos também sejam de modernidade para a medicina, que hoje está fortemente apoiada no avanço da ciência e tecnologia, o estudante dessa profissão continua a estudar durante seis anos, recebendo aulas teóricas e práticas, que vão da anatomia, com dissecção de cadáveres; histologia, com práticas no microscópio; farmacologia; fisiologia; radiologia; semiologia; medicina preventiva; das doenças infecciosas, parasitárias, degenerativas, endócrinas, enfim, de todos os órgãos e aparelhos do corpo humano. Faz estágios em hospitais e, depois do curso de graduação, residência médica de dois anos, a sua especialização básica. Antigamente, também era assim, os médicos recebiam essa mesma formação, antes de se enveredarem interior afora.
Então o que mudou ao ponto das pessoas perderem a confiança nos médicos? O que leva os pacientes ou familiares, geralmente os mais jovens, chegarem aos pronto-socorros aqui da região e, antes mesmos dos profissionais prestarem um primeiro atendimento necessário e ao alcance deles, já vão lhes jogando na cara se não é “caso de transferência para Alfenas ou Poços de Caldas” ? O que faz as gestantes desejarem, indiscriminadamente, uma operação de cesariana? Por que os médicos, de centros de referência regionais, exigem que um paciente a ser transferido seja transportado em uma ambulância sofisticada, tipo UTI mesmo que o colega solicitante não entenda isso necessário, além de oneroso para quem vá pagá-la, ou mesmo inexistente no município?
São muitas as perguntas e muito mais numerosas as respostas. É um assunto de livro, mas discordo que seja somente para sanitaristas ou especialistas em gestão da saúde. Ouso a enfrentá-lo, como qualquer colega de profissão também poderia fazê-lo. Mas, nossa opinião pode soar como heresia para os tecnocratas da saúde, que vivem encastelados nos gabinetes governamentais e que produzem programas surrealistas como o SUSFACIL. Neste, em diversas situações, temos de lutar dramaticamente contra a morte e, ainda assim, gastar parte da nossa energia e do nosso tempo preenchendo relatórios eletrônicos, extensos e frios, que vão para a fila das transferências, enquanto um acidentado ou um infartado está na fila da morte. Dirão que os hospitais de referência poderiam estar lotados e não seria factível colocar um paciente na ambulância sem a certeza do seu recebimento, quando um telefonema, de médico para médico, poderia mais confiável do que relatórios superestimados para a obtenção de uma vaga.
Acredito ser mais objetivo e menos oneroso dotarmos hospitais já existentes de condições de efetivo atendimento, ao invés de ficarmos no vai-vem de pacientes, com todos os riscos, sobretudo de acidentes nas estradas. Em condições mais precárias, 20 ou 30 anos atrás, não somente Guaxupé, também Muzambinho, Juruaia, e outras cidades, salvaram vidas de baleados, esfaqueados, acidentados ou de emergências clínicas, contando com médicos capacitados. Não que os de hoje não o sejam. Por que o retrocesso dessas intervenções não mais serem feitas em tantas cidades, excetuando-se Guaxupé?
O diacho começa na formação desses profissionais, já voltada para a sua especialização, antes mesmo de adentrar uma faculdade, talvez uma distorção de ideia de todos os segmentos da sociedade. Se hoje um cidadão se identifica como médico, lá vem a perguntinha padrão: qual é a sua especialidade? Pois eu tenho vontade de dar outras respostas atravessadas, mas acabo sendo educado, explicando que quando me formei já havia a residência médica, etc. Gostaria mesmo de responder que tive uma formação integral, a despeito de haver me especializado, e depois trabalhado, em hospital-maternidade, exclusivamente. Orgulho-me de ter sido um bem-sucedido policlínico, que ganhou prestígio de bom profissional na opinião das comunidades aonde trabalhou, que operou muita gente, não somente cesarianas. Especialização deveria ser mais uma aptidão científica, para casos mais complexos, pois médico de verdade deveria ser um especialista em gente e menos analista de resultados de exames.
Hoje, criou-se a cultura do especialista, que é válida para uma infinidade de profissões, em qualquer nível de escolaridade. Valoriza-se por demais a figura do médico especialista. Inegável que ele seja mais preparado. No caso da medicina, um curso de residência poderia ser suficiente para que o médico prestasse atendimento amplo, na maioria dos municípios brasileiros, trazendo-o para mais próximo da população, através de mecanismos de fixação mais universalizados. Mas de que adianta ginecologistas e obstetras bem preparados se o sistema não lhes oferece boas condições de sobrevivência e ele tem de correr de emprego em emprego, acabando por serem meros executores de cesarianas e nunca verdadeiros obstetras? Alguém retrucaria que ele teria que ser menos ganancioso e até invocaria o juramento de Hipócrates. Mas essas mesmas pessoas defendem o capitalismo, abominam o socialismo. Uma coisa tem a ver com a outra, pois no capitalismo, muitas vezes, o sujeito pagou ou financiou seus estudos em escola particular, gastou e vai gastar mais com consultório e equipamentos médicos caríssimos. Não seria o caso, por exemplo, dos médicos cubanos, formados pelo Estado e sem ambições pessoais desmedidas.
Sem dúvida, precisamos de equipes médicas diversificadas e multidisciplinares para a existência de hospitais confiáveis. Guaxupé é um grande centro médico, poderia ser mais aproveitado. A Santa Casa de Muzambinho é dotada de boas condições e poderia ser outro centro de bom atendimento. Acontece que os hospitais de hoje vivem em função do SUS – Sistema Único de Saúde - e este, como toda estrutura governamental brasileira, é muito burocrático, exigente e paga pouco pelos serviços que a rede conveniada lhe presta, o que estimula e influencia os próprios hospitais a transferirem os doentes, porque, insistimos, o Brasil adota o capitalismo e o SUS não é bem apropriado para o lucro, embora tenhamos exemplos de sucesso em saúde socializada, como na Inglaterra e no Canadá. Além disso, se o País é capitalista, por que o Governo insiste em esbanjar dinheiro nos fantasiosos postos de saúde da família, que são próprios de uma saúde socializada?
A existência de cidades referenciadas nos leva a uma espécie de saúde sobre rodas. Então, não há ambulâncias ou outros veículos suficientes para atendimento à demanda da população, que também não quer saber de ônibus. Isso agrada aos fabricantes de veículos e à cadeia de empregos que mantêm o setor, mantendo-se uma lógica perversa para as pequenas cidades.
As pequenas cidades, aonde bastariam um ou dois postos de saúde, estão repletas de unidades de saúde da família (PSFs), que, nestes moldes nem sempre funcionam e pagam altos salários para uma minoria, sendo o retorno questionável. Além disso, nelas, a assistência à saúde continua a ser criticada, porque na hora em que a doença chega de verdade, falta a assistência, quero dizer na hora da urgência.
A meu ver, necessitamos da diversificação de hospitais regionais; da existência de unidades de pronto-atendimento 24h por dia em todas as cidades; remuneração condigna para os serviços prestados – e não somente a valorização de serviços de alta complexidade, que permitem aos hospitais de referência, como Alfenas e Poços de Caldas, terem um ganho médio satisfatório; credenciamento e aparelhamento de serviços em hospitais já existentes, que promoveria a fixação de especialistas em cidades menores; construção de um novo modelo de regulação que substitua o confuso e pouco eficaz SUSFACIL; e mudança da legislação constitucional, que permita aos municípios a contratação de profissionais para serviços de saúde, sem concurso público, diante do notório desinteresse de ser concursado para médico, bem como limites para a judicialização da saúde por parte dos curiosos da internet, e da própria Justiça, que a isso dá guarida, sem enxergar a realidade dos municípios e do próprio Estado.
Dirão alguns leitores: o autor já foi prefeito e deputado, por que não agiu? Antecipo a resposta dizendo que como prefeito, no início da década de 1990, o meu Município arcou com o ônus das esterilizações de homens e mulheres, cumprindo regras que criei e a vontade das pessoas, porque tenho a convicção que o primeiro passo para a melhoria deste planeta, consequentemente da saúde, está na redução de seu maior predador – o ser humano. No segundo mandato, diante dos obstáculos de uma lei federal vigente de planejamento familiar, despropositada, complicada e que não arregimenta médicos e hospitais para cumpri-la, usei de outros artifícios para continuar atendendo à população e o fiz. Leis relativas à saúde e da criança e adolescente foram postas em prática. Enfim, fui um prefeito atento à saúde, até porque era da minha obrigação como profissional da área. Como deputado, consegui vencer não só um desafio regional, mas desafiei uma política de governo que tinha posição contrária à construção de hospitais em cidades menores. Assim sendo, articulei e aloquei recursos para a construção do hospital da nossa vizinha São Pedro da União, tendo sido uma vitória a sua inauguração, mesmo que dez anos depois. Como membro e presidente da Comissão de Saúde da Assembleia Legislativa, dei ressonância às minha ideias mesmo sabendo do modesto valor e da pouca autoridade de um deputado estadual. Derrotado nas urnas, voltei para casa sem frustrações, pois defendi as minhas ideias com entusiasmo.

*marco.regis@hotmail.com – O autor é médico, foi prefeito de Muzambinho (1989/92; 2005/08) e deputado estadual-MG (1995/98; 1999/2003)