Publicado em 15/01/2015 - marco-regis-de-almeida-lima - Da Redação
Analistas do cotidiano – como me vejo – não podem ser tomados pela comoção momentânea das multidões. Nas guerras, nas tragédias, nas perdas humanas isoladas ou coletivas, a tendência natural da sociedade é a viva emoção e a ativação de um processo de solidariedade à vitima ou ao conjunto de vitimados. Mesmo que tais analistas vejam os acontecimentos pela ótica diferente da maioria emocionada, não significa que eles, humanamente, desejam finais trágicos para quem quer que seja. Enfim, não são pessoas desprovidas do senso de ajuda mútua, quer dizer, são pessoas impregnadas de solidariedade. Ademais, possuem sentimentos múltiplos e concatenados que lhes permitem um raciocínio com mais justeza, não sabendo eu se isso tem algo a ver com a lógica de Aristóteles, da qual somente conheço citações.
Contudo, analistas do dia-a-dia menos se surpreendem com desastres, mutilações ou mortes decorrentes daqueles que executam atividades arriscadas como as praticadas por esportistas radicais; por agentes de segurança cuja função inerente é o combate ao banditismo; de agentes de saúde que lidam com enfermidades quase que mortais como a causada pelo vírus ebola; por usuários de drogas legais ou ilegais como o álcool, o tabaco, a cocaína, a heroína, o crack e outras; ou por pessoas que habitam regiões sujeitas a inundações, terremotos, vulcões e outros fenômenos da natureza. Nestes exemplos aflora a inegável exposição ao perigo de quem neles se enquadra, estando todos, estatisticamente, muito mais vulneráveis na sua integridade física.
Dentro da análise política, também nada de surpreendente foi o atentado ao jornal nanico, satírico e esquerdista/anarquista, da capital francesa – o Charlie Hebdo. Mesmo porque ele já sofrera outro atentado à bomba, poucos anos atrás, além de freqüentes ameaças. Nunca fui à França, “nem mesmo ao Paraguai dos sacoleiros”, como gosto de brincar e demonstrar o meu desinteresse por terras estrangeiras. Mas, claro, ao longo da minha vida li e ouvi referências sobre prestigiados jornais franceses como Le Monde, Le Figaro, L’equipe, Libération e L’Humanité. Nada de Hebdo. Já havia tomado conhecimento de charges provocativas do Charlie Hebdo ao Profeta Maomé, ao Papa Francisco e até à Santíssima Trindade, mas, sinceramente, desconhecia o Hebdo e suas nuances.
Entrementes, nos últimos dias, lemos, vimos e ouvimos um noticiário farto a respeito desse semanário e sua equipe editorial. Conforme informações veiculadas, ele chegava às bancas nas quartas feiras e sua tiragem era diminuta - 60 mil exemplares – levando-se em consideração a população parisiense. Apesar do seu curioso nome, depois dos vários dias de noticiário, inclusive das muitas horas de transmissão ao vivo da Marcha de Paris e de cerimônia político-religiosa na Grande Sinagoga de Paris, não obtive dentro desse noticiário nem na Wikipedia, nenhuma pista para a sua denominação. Mas, desde o dia do atentado, o tal título de Charlie Hebdo me intrigava. Logo, tive a ousadia de fazer essa exegese a partir dos ensinamentos que obtive no meu curso colegial, partindo do aparentemente mais complicado – o hebdo. Já nos ensinava o querido e talentoso Prof. João Marques de Vasconcellos que hebdomadário é uma publicação semanal. Há o equivalente no francês, que é “hebdomadaire”. Pertencendo a um grupo de pessoas de comportamento excêntrico, certamente que o encurtamento da palavra primitiva para “hebdo” ficaria mais coloquial, menos feia e pedante do que a palavra original. De Charlie, lembrei-me do meu velho disco de vinil de Benito di Paula, produzido pela Copacabana, em 1976, onde o refrão nunca me saiu da mente: Eh! Meu amigo Charlie. Eh! Meu amigo, Charlie Brown... Charlie Brown. Aqui é uma evocação do cantor a um personagem dos seus tempos de criança, companheiro do Snoopy, uma criação dos idos de 1950 do desenhista e cartunista americano, Charles Schulz, que lançou “tirinhas” ou “quadrinhos” em jornais, estilo que eu seguia, na juventude, em uma das páginas do “Estadão”, de São Paulo. Acabei por encontrar na internet – www.colegioweb.com.br uma explicação pela metade do nome do semanário. O Charlie está na mesma linha da minha explicação das “tirinhas”, onde lá se acresce a possibilidade de ser uma pilhéria ao nome do então presidente da França, Charles De Gaulle. Entretanto, o Colégio Web fica inconclusivo ao dizer que o “hebdo” teria sido uma homenagem à antiga publicação “L’Hebdo Mata Hari”, que pertencia ao grupo e foi colocada fora de circulação devido a comentários e charges ofensivas à memória de De Gaulle, através de atos do governo conservador de Georges Pompidou e seu Ministro do Interior, Raymond Marcellin. À maneira das empresas brasileiras que dão o cano na Receita Federal, o Mata Hari reaparece como Charlie Hebdo.
Finalmente, vamos à dissecção dos acontecimentos que, nos primeiros dias de 2015, causaram comoção mundial. Observe o caro leitor, que a decantada “pátria da liberdade”, a França, fechou o L’Hebdo Mata Hari, nos idos de 1970, sem que soubéssemos de alguma grande marcha de protesto pelo cerceamento da liberdade de expressão. Além do mais, até recentemente, ela foi uma grande metrópole colonialista. O lema “liberdade, igualdade e fraternidade” foi estabelecido durante um longo processo revolucionário, período em que aqueles que chegavam ao poder deceparam pescoços nas lâminas das guilhotinas, provocando um mar de sangue e o horror de cabeças rolando ao chão, espetáculos públicos de cenas chocantes, comparáveis à crueldade do Estado Islâmico – ISIS – dos nossos dias.
O excesso de liberdade, ou a liberdade ilimitada, gera a permissividade, que era a expressão dominante no Hebdo Charlie, repudiando o clericalismo, as religiões e os próprios governos de França. Um jornaleco sem limites e de circulação nem tanto ampla, que de tudo e de todos debocha e zomba como se fosse o detentor das verdades. Aqui, no Brasil, já temos programas permissivos como “Pânico”, CQC, que estão a merecer uma frenagem, área aonde se incluía o pioneiro “Casseta e Planeta”, que já foi tarde. Mas, aqui também florescem os detratores e manipuladores dos grandes telejornais, que fazem escola e vão enfiando seus discípulos em outros horários do noticiário, com a mesma arrogância de seus mestres, a exemplo de uma “bonitinha”, como diria o estilo Ronie Von, em horário nobre global.
O escritor, pensador e ex-frei católico, Leonardo Boff, assim expõe no seu blog sobre aqui e acolá: “ Não acho que nenhum dos cartunistas ‘mereceu’ levar um tiro. Ninguém merece, acredito na mudança, na evolução, na conversão. Mas eu queria que eles evoluíssem, que mudassem...Ainda estou constrangido pelos atentados à verdade, à boa imprensa, à honestidade, que a revista VEJA, a GLOBO e outros veículos da imprensa brasileira promoveram nesta última eleição”. Em leonardoBOFF.com ainda extraímos: “piadas são sempre preconceituosas”... “não se buscam raízes mais profundas deste fato condenável, mas que exige uma interpretação que englobe vários aspectos ocultados pela mídia internacional e pela comoção legítima...”.
Boff tem razão. A vingança do Profeta sobre blasfemadores de Paris tem muito mais conotações. O seqüestrador do Hyper Cacher, mercado de alimentos apropriados a judeus, segundo depoimento de um dos reféns, que dele ouviu “que nada tinha contra a religião dos judeus”, afirmando: “ Sou cidadão francês e discordo do meu país estar lá fora, aliado aos Estados Unidos, bombardeando árabes. Também sou contra a política do Estado de Israel, massacrando os palestinos”.
A imprensa brasileira procurou capitalizar os ventos da liberdade de expressão, que sopram da França, cometendo as suas falsidades e manipulações ao condenar os atentados, em nome da liberdade de expressão, minimizando o valor das charges que ofendem a religião islâmica. Entretanto, em 12 de outubro de 1995, essa mesma imprensa, sobretudo a Rede Globo, alardeou, espezinhou, condenou e não deu tréguas ao pastor da Igreja Universal, que no seu programa de TV, chutou a imagem de Nossa Senhora Aparecida – o bispo Sérgio von Helde, que vive fora do Brasil. Para os católicos uma grande ofensa; para os muçulmanos é a liberdade de expressão de jornalistas.
Não somente os imigrantes árabes estão sendo discriminados pelos franceses nos dias de hoje. Judeus também tem ido para o mesmo balaio. A palavra é única – xenofobia. Por isso, ouvimos os inflamados discursos de líderes judeus no último domingo, na Grande Sinagoga de Paris, percebendo-se constrangimento na fisionomia do Presidente François Hollande. “A França para os franceses”, um lema atual no país, nos leva de volta à pureza da raça alemã, no nazismo. Certo é que árabes nascidos na França não estão tendo as mesmas oportunidades que os franceses natos, sofrendo todos os tipos de discriminação.
O atual governo francês é o pior avaliado em pesquisas desde o final da II Guerra Mundial. No quesito segurança demonstrou uma grande vulnerabilidade, deixando de impedir a fuga dos dois elementos que promoveram um grande tiroteio e mortes no centro de Paris. Restou a Hollande participar da Marcha de Paris, quase que implorando a outros governantes para nela estarem, torcendo para que isto lhe ajudasse a recuperar popularidade.
Com todos esses ingredientes políticos, ideológicos e religiosos, eu tenho todo o direito de não ir na conversa midiática e me orientar por um raciocínio cartesiano, um objetivo difícil quando se coloca em jogo tantas variáveis. Desde os primeiros tiros eu já me posicionava, no velho sofá da minha casa: EU NÃO SOU CHARLIE. Imaginei-me um renegado. Mas a internet me apresentou uma infinidade de aliados de ideias, inclusive um hashtag #eunaosoucharlie.
*marco.regis@hotmail.com ou marco.regis.mrdal@gmail.com
É médico, foi prefeito de Muzambinho (1989/92; 2005/08) e deputado estadual-MG (1995/98; 1999/2003).