
No último dia 10 de dezembro, foi divulgado o Relatório da Comissão Nacional da Verdade, que foi criada pela Lei Federal nº 12.528 e instalada em 16 de maio de 2012. Desde então, os seus integrantes investigaram torturas, mortes e desaparecimentos praticados por agentes de Estado, durante o período estipulado no Art. 8º dos Atos das Disposições Constitucionais Transitórias, de 5 de outubro de 1988. Mas, certamente, o objetivo fundamental foi a Ditadura Militar que tomou conta do Brasil entre 1964 e 1985. Na sua escalação, uma composição de escol nos meios jurídico, científico e universitário nacionais. Sete pessoas da melhor estirpe intelectual e profissional.
Necessário se faz que apresentemo-los aos interessados ou aos desavisados. 1) PEDRO DALLARI, Coordenador da Comissão, paulistano, advogado pela USP – Universidade de S.Paulo e Administrador de Empresas pela FGV-SP, Fundação Getúlio Vargas. Doutor e Professor de Direito Internacional/USP. 2) GILSON DIPP, gaúcho de Passo Fundo, formado em Ciências Jurídicas e Sociais pela UFRS. Ministro do STJ – Superior Tribunal de Justiça. 3) JOSÉ CARLOS DIAS, paulistano, graduado em Direito pela USP. Defendeu presos políticos da ditadura junto à Justiça Militar.
Foi Secretário de Justiça do Estado de SP no Governo Franco Montoro e Ministro da Justiça no Governo de FHC – Fernando Henrique Cardoso. 4) JOSÉ PAULO CAVALCANTI FILHO, graduado pela Faculdade de Direito do Recife-PE. Consultor da UNESCO e do Banco Mundial. Foi Secretário Geral do Ministério da Justiça e Ministro interino desta Pasta, no governo do Presidente Sarney. 5) MARIA RITA KEHL, paulista de Campinas, sendo formada em Psicologia pela USP, Mestra em Psicologia Social e Doutora em Psicanálise. Jornalista e escritora premiada. 6) PAULO SÉRGIO PINHEIRO, carioca, Doutor em Ciência Política pela Universidade de Paris. Professor e pesquisador da USP. 7) ROSA MARIA CARDOSO DA CUNHA, carioca, formada em Direito pela UFRJ, sendo Mestra em Direito Penal pela USP e Doutora em Ciência Política pela UERJ.
Muita celeuma se estabeleceu não somente com a divulgação do parecer final, mas, durante todo o período de trabalho do mesmo, porque grande parte dos agentes repressores já morreu, outros envolvidos se calaram, na maioria das vezes em que foram interpelados, ou escarneceram dos fatos, em determinados momentos, sustentando uma legitimidade nas suas ações em nome de “uma guerra aos subversivos, que representavam uma ameaça comunista ao Brasil”. Ninguém de bom senso esperava outro rumo na busca da verdade, de um período de trevas, onde torturadores tinham carta branca para as suas práticas desumanas, arrogantes e doentias. Vejam que no dia seguinte do relatório em apreço ter vindo à tona, o Congresso dos Estados Unidos (EEUU) publicou algo idêntico, quer dizer a sua “Comissão da Verdade”, elaborado pelo Comitê de Inteligência do Senado, causando um rebuliço no país e no mundo. Nesse, o Congresso dos EEUU concluiu que, usando a Guerra ao Terror como desculpa, a CIA – Agência Central de Inteligência – usou, ao longo dos últimos anos, “técnicas de interrogatório” tão ineficazes como sádicas.
Tanto nos EEUU como no Brasil há vozes favoráveis e contrárias à aplicação da tortura. A “Folha de S.Paulo”, em sua edição do dia 12 do corrente ( A14/Mundo) estampa a manchete “Diretor da CIA defende ações da agência”, destacando a posição do seu Diretor, John Brennan: “quaisquer que sejam as suas opiniões, nossa nação, e em particular esta agência, fez muitas coisas certas para manter o país seguro e forte durante esse período difícil”. Enquanto isso, o ex-vice-presidente de George W. Bush, Dick Cheney, afirmou: “... a ideia de que a agência estava operando de forma enganosa e de que nós não estávamos informados é um a mentira completa...Bush sabia de tudo... esse relatório do Senado está cheio de besteiras...nosso objetivo era capturar os desgraçados que mataram 3.000 de nós no 11 de setembro...”. No Brasil, as mais diversas mídias apresentam os voluntariosos e descarados defensores da tortura – críticos ferozes da Comissão da Verdade. O colunista da “Folha de S. Paulo”, Reinaldo Azevedo, “um tal” que disputa com o ex-Veja, e atual Globo News, Diogo Mainard, o título de Nº1 dos Nojentos, rotula o conjunto de pessoas em questão de “Comissão Nacional da Farsa”, fazendo os mesmos questionamentos dos corporativos clubes militares – o Naval, o Militar e o da Aeronáutica -, ou seja, a não inclusão de 126 vítimas fatais causadas pelos “terroristas” ou “subversivos” em confrontos com forças do governo, onde estão incluídos militares, policiais dos Estados e civis. Um leitor de jornal, Vicente Limongi Netto, do Distrito Federal, escreveu: “Muito carnaval em torno do relatório da Comissão da Inverdade. Açodados pelo jogo político e indignados por oportunismo insistem em demonizar as Forças Armadas. Os excessos ocorreram dos dois lados. Dores profundas e seqüelas também atingiram as famílias de militares. Esquecem que foram as Forças Armadas que evitaram que o Brasil acabasse dominado pela praga do comunismo”.
Opiniões acima, nacionais e norteamericanas, possuem um raciocímio em comum: que o Estado pode cometer os mais insanos e violentos atos contra os seus inimigos para a sua própria defesa. Não seriam estas violações dos direitos humanos as mesmas por onde enveredou a Alemanha nazista, exterminando milhões de judeus, além de ciganos, homossexuais e outras minorias, tão criticadas até hoje pelo Ocidente? Não seriam as mesmas afrontas aos direitos humanos praticados por Stalin na União Soviética? Ou por crimes étnicos na antiga Yugoslávia? Não é tudo igual às invasões e ocupações feitas pelos Estados Unidos da América nos mais diversos cantos do mundo? E o que dizer do apoio logístico e financeiro para o patrocínio de golpes de estado, prisões arbitrárias, desaparecimentos e mortes em um período quase que concomitante de ditaduras no Brasil, Argentina, Chile e Uruguai? Isto para nos referirmos apenas aos vizinhos do Cone Sul.
O atual presidente do Uruguai, o folclórico e despojado José Mujica, em entrevista no programa Canal Livre, da Rede Bandeirantes de TV, para os jornalistas Mitre, Boechat e Panúnzio, dentro da sua simplicidade como pessoa humana, mas na sua convicção socialista, indagado como o Uruguai lidou com a questão dos crimes cometidos pela última ditadura no seu país, ele foi categórico em afirmar que, na medida do possível, muitos dos infratores dos direitos humanos foram postos na cadeia, mas que o trato da questão é muito difícil e delicada. “QUEM COMETEU ATROCIDADES NUNCA SE DISPÕE A CONFESSAR OS SEUS CRIMES, POIS NÃO QUER DAR PROVAS PARA A SUA CONDENAÇÃO. POR OUTRO LADO, O ESTADO DEMOCRÁTICO TEM QUE SE COMPORTAR COMO TAL NÃO UTILIZANDO DOS MESMOS MEIOS DE TORTURA DE QUE FEZ USO O ACUSADO PARA OBTER UMA CONFISSÃO”.
Não precisamos ir tão longe para localizarmos vestígios de torturados. Relato alguns casos aqui da nossa região. Um livro publicado em co-autoria por dois ilustres filhos de NOVA RESENDE: José Roberto Gonçalves Rezende, filho de um Juiz de Direito que atuou nessa Comarca, advogado e primeiro ocupante da Ouvidoria da Polícia Militar de Minas Gerais, no Governo Itamar Franco, e Mouzar Benedito, geógrafo, jornalista e escritor, conta as atividades de José Roberto na clandestinidade e na prisão, através de “Ousar Lutar: Memórias da Guerrilha que Vivi”. GUAXUPÉ - dois guaxupeanos, Wagner Raggi, cujo cunhado, José Luís Guedes, envolveu-se com o movimento estudantil, por meio da Juventude Estudantil Católica e foi Presidente da UNE – União Nacional dos Estudantes – e Sérgio Elias, o “Rabanete”, foram prisioneiros da ditadura, em Belo Horizonte. Em MUZAMBINHO, década de 1970, certo dia muros amanheceram pichados com a frase “Abaixo a Ditadura”. Incontinenti a Polícia Política do Estado – o DOPS – baixou na cidade, fez prisões e torturou os jovens, um deles Homero Parizzi, hoje líder comunitário e militante do PDT. Ele e mais outro, cerca de uns dois anos atrás, receberam indenização de trinta mil reais do Estado, uma forma simbólica de demonstração que foram vítimas da Ditadura Militar. Um terceiro morreu antes de receber a indenização, mas a família a receberá.
Quando parlamentar, fiquei muito amigo de uma pessoa fantástica, sonhadora, dócil, ex-deputado federal por um mandato, Dimas Perrin, já falecido, com quem eu colaborava na edição de um jornal mensal, produzido na gráfica da sua família. Guardo com carinho o seu dramático livro “Depoimentos de um Torturado”, relatando as suas inúmeras prisões e privações pelo único “crime” de ser comunista.
Também quero reverenciar uma estudante de medicina da UFMG, Maria Auxiliadora Lara Barcellos, três anos à minha frente, bonita mulher, com quem ocasionalmente falei, porque eu era bolsista/funcionário do restaurante universitário da faculdade, zelando pelas carteirinhas dos alunos que o freqüentavam. Um belo dia ela sumiu da Escola e soubemos que ela foi viver na clandestinidade, assumindo a luta armada na VAR-Palmares, cujo líder era o ex-Capitão do Exército, Carlos Lamarca. Em 21-11-1969, ela foi presa no Rio de Janeiro e violentamente torturada por muito tempo. Em 13-1-1971, ano no qual eu viria a me formar, ela estava entre os setenta presos políticos que foram trocados pela libertação do embaixador da Suíça no Brasil, Giovanni Enrico Bucher, que ficou 40 dias no cativeiro da organização de Lamarca. Exilada no Chile, aonde Pinochet viria a dar golpe de Estado, derrubando o Presidente Allende, em setembro de 1973, ela se abriga na embaixada do México, vai para a Europa e ganha uma bolsa para retomar seus estudos de medicina na Alemanha, em 1974. Com sérios problemas psicológicos causados pela tortura, ela cometeu suicídio numa estação de metrô de Berlim ocidental, quando se atirou nos trilhos na frente de um trem. Veja o You tube de Maria Auxiliadora Lara Barcelos, contando sua vida para jornalistas, ainda em Santiago. São momentos fortes. Confesso que chorei por ela, por Dimas Perrin e tantos outros, enquanto a via falando pelo You Tube, no último domingo. Minha mulher, Adalete Nunes, foi colega de turma de uma irmã dela na Faculdade de Direito da UFMG. Coincidentemente, um irmão dela foi namorado de uma muzambinhense e consta que ele veio muitas vezes à cidade.
No momento em que a Comissão Nacional da Verdade exprime os resultados de cerca de 1.100 depoimentos, em um documento de quase 4.500 páginas, onde conclui que 434 pessoas foram mortas ou desapareceram, detalhando as mais perversas e cruéis formas de tortura, nós conclamamos os brasileiros, especialmente os mais jovens, a fazerem um papel crítico e reflexivo, mormente do que aconteceu no Brasil, por duas décadas de arbítrio e tirania, a fim de que preservemos a liberdade e a democracia conquistadas pelo sacrifício de tanta gente. A Presidente Dilma Vana Rousseff, também presa e torturada, cumpriu o seu papel junto à Comissão da Verdade. Esta apontou os nomes de quem cometeu crimes contra a humanidade, a começar dos generais-presidentes e seus ministros, pois ficou o entendimento que os crimes foram resultado de uma política de Estado. Ela chorou ao receber o Relatório, mas não quer que ele sirva para qualquer tipo de revanchismo e prega a manutenção da Lei da Anistia.
*marco.regis@hotmail.com – O autor é médico, tendo sido prefeito de Muzambinho (1989/92; 2005/08) e deputado estadual-MG (1995/98; 99/2003).
PERÍODO DE TORTURA - Merece transcrição a seção Painel do Leitor, da Folha de S. Paulo, do dia 17/12, do Senador José Serra:
“COMISSÃO DA VERDADE
A Presidente do Superior Tribunal Militar, Maria Elizabeth Teixeira Rocha, deu declarações que exaltam o papel da Justiça Militar na defesa dos direitos humanos (Folha de S. Paulo, 16/12). Pelo que se depreende, não haveria mácula que pesasse sobre a atuação dessa justiça no período. Não é verdade. Eu próprio fui vítima de sórdida condenação a três anos de prisão na Auditoria Militar de São Paulo em 1966, a partir de provas forjadas, uma verdadeira palhaçada, destinada simplesmente a cumprir ordens de alguns agentes da repressão da época que mantinham o Tribunal sob tutela. Seria preciso ainda lembrar outros casos, como o da infame condenação do Prof. Caio Prado Jr., que cumpriu pena no Presídio Tiradentes”.
José Serra - Senador eleito de São Paulo