Publicado em 18/01/2016 - paulo-botelho - Da Redação
Hildebrando olhou para o Cristo crucificado na parede da sala. O Cristo estava lá na parede da sala. Ele crescera sob o olhar agonizante daquele homem torturado; e isso fez dele um menino tímido e desajeitado que andava, quase correndo, como um coelho assustado. A dor do Cristo o deixava fora de si; dava para ver em sua expressão infeliz. Se aquele homem da cruz um dia voltasse à Terra, Hildebrando teria dúvidas se estaria mesmo disposto a salvar a humanidade.
Josué, o pai de Hildebrando, não era gordo e nem magro; de tórax robusto e pernas finas lembrava um pouco o mapa do Brasil. Funcionário público federal, trabalhava - ou dava expediente – do meio dia às quatro da tarde de segunda a sexta-feira. Vestia-se como um dândi: roupas justas, sob medida, feitas em alfaiate. Um terno ou uma camisa mal passados era motivo para agredir e humilhar a mulher, sua serviçal. Pela manhã dormia o sono dos justos, mas acordava lá pelas dez quando a mulher servia, na cama, um reforçado café com leite completo fizesse sol ou chovesse. E chovesse ou fizesse sol, ainda ficava a pedalar a máquina de costura Singer. Dela saiam as costuras que garantiam o sustento da casa. A Singer, a tesoura, a fita métrica, os moldes e as panelas do arroz e do feijão a se confundirem numa única mulher de serviços. Sem descanso; sem consolo.
O relacionamento turbulento entre pai e filho durou dezesseis anos; tempo suficiente para o filho dar um tempo e sair de casa sem tempo de volta. Hildebrando concluíra não existir presente vivo com passado morto. Quando se expulsa o passado pela janela, ele pode voltar pela porta principal.
Josué fez do tempo algo a serviço do seu prazer ou deleite; e não viu que o seu tempo passara enganando os anos.
Na volta à casa, após o enterro, Hildebrando olhou para a parede da sala. O Cristo ainda estava lá.
Paulo Augusto de Podestá Botelho é Consultor de Empresas e Escritor. www.paulobotelho.com.br