Publicado em 04/01/2016 - paulo-botelho - Da Redação
As retinas de meus cansados olhos ainda guardam imagens da Muzambinho de meu tempo. Não creio que a cidade tenha mudado muito nos tempos de hoje, exceto no quesito educação e cidadania. Para pior. A principal lembrança que me vem à mente é a do trem-de-ferro da Mogyana, movido a vapor com seu apito triste e pontual. Havia vagões de primeira e de segunda classes. Nos vagões de segunda aboletavam-se pessoas tristes, pobres, esparramadas em duros bancos de madeira. Foi sentindo-os em minha bunda que, pela primeira vez aos 16 anos, tomei consciência de diferença social. Não conseguia entender o porquê da maioria das pessoas ter que viajar de segunda se havia uma confortável primeira. Naquela época, Muzambinho já tinha pessoas cheirosas, bem banhadas, massageadas; na verdade uma minoria bem de vida ou remediada que ocupava aqueles assentos da primeira classe.
O ar era rarefeito no Alto do Anjo, mas mesmo assim jogava-se futebol; o campo só tinha uma trave – e os times se revezavam. No da rua Vieira Homem – a rua do famoso driblador Corote – tinha duas.
Meu tio Sylvio (Sylvio de Podestá), correndo descalço, venceu a primeira corrida de São Silvestre deixando para trás os bem nutridos soldados, cabos e sargentos do Batalhão Militar que se instalara dentro do Colégio Estadual (atual Salatiel de Almeida) desde o assassinato do professor Saint-Clair. Na verdade, era uma soldadesca metida à besta que nada fazia de produtivo pela cidade. Quando foram embora, o trem quase que descarregou todo o seu estoque de apitos para apupá-los.
No inverno geava e a geada destruía as plantações, principalmente os cafezais. – O café, principal produto de trabalhoso cultivo, sempre foi o carro-chefe da economia de minha cidade.
Neste espaço, que o Vagner Alves me cede com tanta consideração, não poderia deixar de mencionar o Samuel (Dr. Samuel de Assis Toledo). Fraterno amigo, Samuel me ensinou a ler os clássicos de sua erudita biblioteca, além de me ajudar a pensar e a escrever. Alto, robusto, elegante, era dotado de aprofundada cultura que obtivera com os jesuítas. Foi um médico competente e dedicado a seus pacientes. Samuel amava Muzambinho, embora não fosse Muzambinhense. Quando decidiu se mudar com a família para outra cidade, não suportou a situação: morreu de infarto no dia da mudança.
O quintal da casa da dona Maria (Maria de Luna Botelho) – minha avó – era quase uma chácara. Tinha pera, jabuticaba, abacate, manga, jambo, mamão, goiaba e laranja; muita laranja que o meu tio Luna (Joaquim de Luna Botelho) descascava com canivete – e fazia uma tampa que eu e meu irmão João Ricardo ficávamos bestas de ver tanta destreza e paciência.
Quando terminei o Curso Ginasial, imaginei, como o poeta Manuel Bandeira, poder ir embora para Pasárgada. – Eu também quis ser amigo do rei. Todavia tive que ir mesmo para São Paulo trabalhar e estudar. E não consegui escapar do vagão da segunda classe: foram dolorosas 10 horas-bunda de viagem. Na véspera da partida, minha mãe fez um frango com farofa; e junto encontrei uma garrafa de guaraná Antártica, quente; não tínhamos geladeira.
E Muzambinho segue feliz no trem da vida, sem sentir o peso dos anos, como que numa festa móvel. Neste dia de seu aniversário - mesmo de longe - vou continuar me lembrando de sua presença viva guardada em meu coração. – Parabéns!
Paulo Augusto de Podestá Botelho é Muzambinhense, Consultor de Empresas e Escritor. www.paulobotelho.com.br