A segunda é sempre melhor

Publicado em 30/04/2021 - raul-dias-filho - Da Redação

A segunda é sempre melhor

Semana passada falei sobre minha primeira experiência como repórter e como tudo que podia dar errado realmente deu. Mas nada como um dia após o outro. Depois da desastrada 'entrevista' com Newtão, o governador mineiro, lá estava eu na redação, por volta das cinco da tarde, esperando a pauta do dia. Ou melhor, da noite, já que o horário noturno normalmente é reservado aos 'focas', como são chamados os iniciantes da profissão. Desta vez nem foi preciso recomendações. A pauta era simples: uma exposição de peças encontradas em antigas aldeias indígenas da região. Por coincidência, de novo em Pouso Alegre. E lá fomos nós, estrada afora. Como todo cabaço que se preza, judiei do cinegrafista. Pedi que fizesse imagens de quase todas as peças. E preparei um texto que, na minha cabeça, seria antológico, para uma reportagem de uns oito minutos, analisando o passado, presente e futuro das comunidades indígenas no Brasil. Além de suas intrínsecas relações com o artesanato. A coordenadora da exposição estava animada, talvez prevendo que, dado o entusiasmo do repórter, aquela matéria seria destaque no Fantástico ou Jornal Nacional. Sei que ficamos quase quatro horas gravando. O balde de água fria veio logo na saída, quando o cinegrafista, naturalmente emputecido, resmungou com o auxiliar: 'quatro horas de gravação para uma materinha que vai render 30 segundos no jornal'.
- 'Como assim ?', perguntei. 'você não percebeu que existe uma história incrível por trás de todo aquele artesanato ?'
Ele foi objetivo, prático e demolidor:
- 'Raul, em televisão você não conta história mostrando pecinhas de barro. Você conta mostrando e entrevistando personagens'.  E arrematou, meio que ignorando meus argumentos: 'vamos passar em algum restaurante para comer, porque vamos chegar em Varginha só de madrugada.'´

Seguimos em silêncio no carro até um restaurante que, se não me falha a memória, se chamava Degrau. Naquela altura do campeonato, havia poucos clientes ali. E foi impossível ignorar o furdúncio numa mesa dos fundos. Pelo barulho, gargalhadas e, principalmente, pela aparência das figuras. Na mesa, além de várias outras pessoas, estavam Baby Consuelo e Thomaz Green Morton. Ela, uma das grandes cantoras brasileiras da época, totalmente sem pecado e sem juízo, tinha acabado de se separar de Pepeu Gomes. E Thomaz estava no auge. Era conhecido em todo o Brasil e até no exterior como um paranormal capaz de produzir luzes, entortar talheres e fazer perfume brotar das mãos. Estes poderes misteriosos teriam surgido depois dele ter sido atingido por um raio enquanto pescava. O guru do 'rá' atraía uma legião de seguidores para seu sítio, em Pouso Alegre. Inclusive personalidades como Elba Ramalho, Ivo Pitanguy e Gal Costa. Na época, Thomaz cobrava até 20 mil dólares para supostos tratamentos de energização. Realmente, era um cara muito estranho aquele Thomaz. Usava barba e cabelos compridos, vestia uma bata colorida e tinha, bem no meio da testa, uma protuberância meio azulada, que ele dizia ser o 'terceiro olho'. O fato é que, naquela noite, ele e Baby estavam chapados. Já tinham bebido rios de cerveja e whisky. Me lembro que era mês de dezembro. Então pensei: 'vou entrevistar o Thomaz e pedir pra ele fazer algumas previsões para o ano que vem'. Seria perfeito! Quando disse isso ao cinegrafista, ele quis morrer. Já tinha trabalhado mais do que o suficiente para uma simples exposição e agora teria que interromper o jantar pra gravar com um guru ?? Não mesmo! Sei que deu o que fazer pra convencê-lo. Na verdade, tive que pagar a metade da conta. E lá fui eu para a mesa de Thomaz e Baby. Quando cheguei fui direto pra ele:

"- Olá, Thomaz, tudo bem ? Meu nome é Raul, sou repórter da TV Sul de Minas e gostaria de gravar uma entrevista, pra que você faça algumas previsões para o ano que vem...'

Ele olhou demoradamente em meus olhos, muito sério. De repente estendeu a mão direita espalmada em minha direção e gritou pra Pouso Alegre inteira ouvir:

'- Ráááááááááááááááá!!!!!!!!!!!!'

Juro que quase caí de costas com o susto que levei. Ainda mais que a mesa inteira, Baby inclusive, acompanharam o guru no grito e repetiram, todos com a mão espalmada em minha direção:

-'Rááááááááááááááá!!!!!!'

Eu ergui a mão e respondi, num sussurro:

- 'rá...'

Foi bom porque quebrou o gelo. Thomaz deu uma gargalhada e puxou uma cadeira pra eu sentar. Aí ficou meia hora falando. Disse que não poderia gravar entrevista porque tinha um contrato exclusivo com uma emissora suíça e também porque as previsões que ele tinha eram bombásticas demais e iriam assustar o mundo. Enfim, uma historia sem pé nem cabeça mas que deixaram aquele jovem repórter impressionadíssimo. Ainda tentei convencê-lo, mas não teve jeito. Foi então que o próprio Thomaz sugeriu:

'- Porque você não grava com minha amiga Baby ? Ela acabou de se separar, está gravando um novo disco e tem muita coisa pra falar.'

Me virei pra Baby e falei:

- 'Ok ? Pode ser ? Você grava comigo ?

- Claro! Vamulá!!! Arma o circo ali e me chama quando estiver pronto.'

A equipe, que ainda estava terminando o jantar, ficou irada, claro. Tiveram que buscar câmera, iluminação, microfones, vt, enfim, uma parafernália de equipamentos. Mas depois de tudo pronto, gravei uma senhora entrevista com Baby. Ela falou sobre o começo da carreira, da formação do grupo 'Novos Baianos', do fim do casamento com Pepeu, da fase cósmica e telúrica, dos filhos (estava grávida na epoca) e da música popular brasileira. Quando me despedi, já de madrugada, Thomaz Green Morton se virou novamente pra mim e repetiu:

'-Rááááááááááááááá....uuuuulllll !!'

Todos deram risadas, agradeci novamente e pegamos estrada. Depois, fiquei uma semana com o corpo impregnado por um perfume adocicado que ele, sei lá como, exalou sobre mim e que não havia banho que tirasse do corpo. No dia seguinte, como o cinegrafista tinha previsto, a matéria sobre a exposição foi exibida com exatos 30 segundos de duração. Já a entrevista com Baby mereceu uma edição especial e foi ao ar no telejornal de sábado, com quase seis minutos de duração. Como não tinha feito nenhum contra plano, não apareceu nenhuma pergunta minha. (O contra plano é quando o reporter, depois da entrevista, repete todas as perguntas de frente para a câmera. É um recurso usado quando gravamos com apenas um cinegrafista. Depois, na edição, fica parecendo que a entrevista foi gravada com duas câmeras). Mas no final da entrevista apareceu o crédito 'reportagem - Raul Dias Filho'. E ainda recebi muitos elogios da chefia por ter tido a iniciativa de fazer uma matéria que não estava na pauta. Foi uma sensação extraordinária. Que se repetiria, dias depois, ao gravar com um dos maiores nomes da história da MPB. O primeiro grande 'furo' da minha carreira. E totalmente casual. Mas isto eu conto semana que vem.

 

Porque por hoje é isso. Mas semana que vem tem mais. Até lá.

 

RAUL DIAS FILHO - O autor é jornalista e repórter especial da Record TV

E-mail: rauldiasfilho@hotmail.com