Publicado em 02/10/2020 - raul-dias-filho - Da Redação
Esta semana foi ‘aniversário’ de um dos acidentes mais tristes da história no Brasil. No dia 29 de setembro, exatamente 14 anos atrás, um avião da Gol caiu em plena floresta amazônica, matando as 154 pessoas que estavam a bordo. Me lembro que foi numa sexta feira a tarde. Eu estava na redação da Record TV, em São Paulo, quando começaram a chegar as primeiras informações dando conta que um Boeing da Gol tinha desaparecido dos radares. Quando isso acontece, sabemos que a possibilidade de uma tragédia é enorme. No dia seguinte, eu já estava em Peixoto de Azevedo, no Mato Grosso, a cidade mais próxima do local da queda. ‘Próxima’ na verdade, é jeito de falar, porque a distância era de pelo menos 250 km. E ali eu fiquei por quase 3 semanas, na mais longa e exaustiva cobertura de minha carreira. Exaustiva no sentido físico e mental. Numa cobertura desse tipo, o repórter não ‘entra’ dentro da tragédia imediatamente. A gente vai caminhando em direção a ela. De que forma? Através dos depoimentos, das entrevistas, dos contatos com as famílias diretamente atingidas e, principalmente, com as cenas e situações que encontramos pela frente. Nesta profissão, existem certas imagens que nos acompanham para toda vida. Se tornam inesquecíveis por serem marcantes, para o bem ou para o mal, e por nos tocarem fundo no coração. O primeiro contato direto que tive com a tragédia aconteceu na Fazenda Jarinã, uma fazenda de gado que a Aeronáutica transformou em base de operações para o resgate dos corpos. Era final de tarde, o sol grande e vermelho estava se pondo, e eu estava observando aquela paisagem linda, com os braços apoiados numa cerca de curral, quando um helicóptero surgiu, bem pequeno, na mesma direção do sol. No começo, só percebi um pequeno pontinho preto no horizonte, que foi crescendo junto com o barulho do motor, à medida em que ele se aproximava da fazenda. Foi então que percebi que ele trazia uma carga macabra: um enorme cesto pendurado, onde estavam os corpos e restos mortais resgatados no local do acidente. Aquela imagem foi profundamente marcante. Através dela, percebi naquele exato momento que o cesto trazia muito mais que corpos. Eram sonhos, planos, histórias, que se perderam, que se foram para sempre. Alguns dias depois, teria novamente esta mesma sensação quando cheguei até o local do acidente, guiado pelos índios. Fui o primeiro repórter a chegar, por terra, aos destroços. E tudo que vi ali ficou gravado em minha memória. Cada passo revelava uma nova face da tragédia. Roupas penduradas nas arvores, documentos, fotos e objetos pessoais espalhados por uma área imensa, o cheiro de combustível misturado com o cheiro da morte... tudo isso te marca de maneira definitiva. Eu voltaria ao mesmo local duas vezes: em 2007, fazendo a reportagem de ‘um ano depois’, e em 2016, repetindo os mesmos passos 10 anos depois. A sensação foi tão amarga quanto da primeira vez. Em 2016 foi preciso caminhar 3 dias para localizar os destroços, agora completamente encobertos pela vegetação. É como se a floresta dissesse: ‘pronto, acabou, a página precisa ser virada’. Mas essa página não vira para as famílias das vítimas, que até hoje clamam por justiça. Os pilotos do jato Legacy, que colidiu com o Boeing em pleno ar por terem desligado aparelhos fundamentais para o voo, jamais foram punidos. Pelo contrário, são tratados como heróis nos Estados Unidos. E isso machuca os familiares tanto quanto a dor da saudade. Esta semana, recebi o convite para gravar um vídeo para a Associação dos Familiares e Amigos das Vítimas do Voo 1907, relembrando a data e reforçando a importância de que a impunidade não prevaleça para sempre. No convite, ressaltaram que têm muito carinho pelo meu trabalho e gratidão pela cobertura que fiz na época. Como não se comover? O reconhecimento é, talvez, a melhor recompensa para tudo que fazemos, em nosso trabalho e na vida. E quando ele chega dessa forma, inesperadamente e de pessoas diretamente atingidas por uma tragédia, traz, junto com ele, a sensação do dever cumprido Devo dizer que os momentos que vivi durante a cobertura foram intensos e inesquecíveis. E eles serão contados em um livro que escrevo, pacientemente, desde quando retornei do acidente, 14 anos atrás. Nele, conto sobre personagens e situações que ajudam a entender como e porque tudo aquilo aconteceu. E como a cobertura de uma tragédia pode ser extremamente desgastante e, ao mesmo tempo, tão importante na carreira de um jornalista. Abaixo, transcrevo a introdução.
Acordando no acampamento
“5:00h da manhã. Estou no meio da floresta amazônica e acordo numa rede, amarrada entre duas árvores. Os primeiros raios de sol penetram por entre a densa folhagem e o calor úmido já começa a tomar conta da mata.
Abro os olhos devagar, e sinto as costas doerem quando tento me levantar. Esfrego os olhos, levanto a cabeça e só então percebo que sou o último a acordar no acampamento. Vinte e dois índios caiapós, mandakurus e kayabis, já estão de pé e se movimentam silenciosamente.
Alguns fazem fila para pegar luvas medicinais, de plástico, que são distribuídas por agentes da Funai. Outros empunham facões afiados, cortam madeira e improvisam ferramentas que serão usadas durante uma longa caminhada. Acordo como dormi: de calça jeans, camiseta e meias. O único trabalho é calçar as botinas e trocar a camiseta por uma camisa de manga comprida e tecido grosso como lona.
Perto dali, um índio me observa atentamente. É o cacique Megaron Txucarramae, chefe de todas as tribos da região. Tão respeitado pelos índios que é chamado ‘Benadiore’, algo como ‘chefe dos chefes’. Ele se aproxima da rede, me olha fixamente nos olhos e pergunta:
- Raú tá pronto ?
- Pronto, Megaron. Preparado.
- Megaron fica. Caminhada é muito dura pra mim. A costa dói.
Até poucos dias atrás, Megaron estava numa cama de hospital. Uma queda havia fraturado algumas costelas e ele ainda se recupera das luxações. Mas foi um dos primeiros a chegar. E agora coordena a caminhada que vai nos levar 8 quilômetros para dentro da floresta.
Olho para cima, para a copa das árvores e suspiro alto. Megaron segura meu braço com firmeza e repete o que havia dito na noite anterior:
- Você vai, Raú! Vai registrar tudo o trabalho do índio. Vai ser o primeiro a chegar lá. Junto com índio.
A voz de Megaron é grave, firme, inspira respeito. O olhar é sempre fixo, altivo, sereno.
Aceno com a cabeça, afirmativamente.
- Tudo vai ser mostrado, Megaron. Tudo.
- Então vai. É longe o lugar que avião caiu.
Olho em volta e os índios estão perfilados, olhando em nossa direção. Só esperam por mim. Suspiro alto de novo. E começo a caminhar junto com os índios. Estamos indo para dentro de uma das maiores tragédias da aviaçao mundial.”
Por hoje é isso. Semana que vem tem mais. Até lá.
Raul Dias Filho
O autor é jornalista e repórter especial da Record TV
E-mail: rauldiasfilho@hotmail.com