Boemia, aqui me tens de regresso

Publicado em 08/01/2021 - raul-dias-filho - Da Redação

Boemia, aqui me tens de regresso

Quando jovem, ele gostava da boemia. Varava noites em rodas de viola e não perdia um baile sequer. Bem apessoado, se vestia com esmero: calça de tergal, camisa bem passada, paletó de linho branco, bigode aparado e, no cabelo, brilhantina Gessy. Interessante que, nos bailes, nem dançava muito. Gostava mesmo era de ouvir as serestas. Quando tocava as músicas preferidas, ficava numa espécie de transe. Os olhos brilhavam, um leve sorriso surgia no rosto, os braços iam e vinham com os dedos indicadores fazendo as vezes de baquetas. E cantava baixinho a letra inteira da música. Até que num baile qualquer, fazendo jus ao ditado “pote que tanto vai ao poço um dia volta trincado”, ele encontrou a alma gêmea que tanto sonhava encontrar. E então os bailes deixaram de fazer sentido. Mas as músicas, não. Delas, nunca abriu mão. Já estava na chamada ‘meia idade’ quando reencontrou as canções que tanto amava no bar da esquina, onde o balconista, generoso, sintonizava o velho rádio de válvulas no programa que tocava as ‘músicas da saudade’. Entre elas, as serestas e chorinhos que embalaram a juventude. No bar, não usava mais o terno de linho mas continuava elegante: camisa bem passada, manga abotoada no punho, calça de tergal e cinto de couro legitimo. O lugar dele no balcão era sagrado: no canto, sempre perto do rádio e de onde via todo o movimento. Para acompanhar as músicas, pedia sempre um ‘rabo de galo’ e uma cerveja gelada. Vez ou outra aceitava um tira gosto que estivesse circulando pelo bar. E depois de muitos tragos e muitas cervejas, ao ouvir as serestas e chorinhos, os olhos brilhavam e marejavam, o sorriso brotava fácil, e ele saía a dançar, como se tivesse nos braços a alma gêmea, enquanto cantava baixinho a letra inteira da música. E foram muitos anos assim. Até que o bar foi vendido e, nas mãos do novo e jovem dono, o velho rádio de válvulas deu lugar a uma caixa de som que, em vez de serestas, enchia o ambiente com música eletrônica e funk. E então o bar deixou de fazer sentido. Mas as músicas, não. Fiéis, continuaram com ele e o acompanharam muitas e muitas noites no silêncio de um quarto escuro, através de um rádio portátil que ganhava vida e voz no criado mudo ao lado da cama. E quando Nelson Gonçalves, Orlando Silva, Pixinguinha e outros ‘amigos’ da boemia cantavam no rádio, tudo se repetia: o brilho no olhar, o sorriso embevecido, o menear das mãos e da cabeça e o sussurro das letras que ele sabia de cor. Até que uma noite, naquele horário de sempre, ele se sentou na poltrona, ligou o rádio, deixou o copo com a cachaça preparados, mas o programa de serestas não estava lá. Sem audiência, tinha sido cortado da grade, limado, extinto. E então o rádio deixou de fazer sentido. Dizem, ninguém sabe se é verdade, que foi a partir daquela noite que ele começou a definhar. Não sorria mais, não fazia as piadas de sempre, não brincava com os netos, e pouco a pouco foi se esquecendo de pessoas, nomes, datas, lugares...  Em pouco tempo deixou de reconhecer alguns amigos, depois alguns parentes e logo até a alma gêmea se tornou uma desconhecida. Durante muito tempo, todos insistiram, tentando resgatar alguma memoria: 

Oi, meu amor. Sou eu, sua alma gêmea. 

Oi pai. Sou eu, seu filho. 

Oi vô. Sou eu, seu neto. Se lembra de mim..? 

E nada. Nenhuma resposta. Os olhos, agora opacos, fitavam o nada. E assim o tempo foi passando. Como ele não reagia, também foram se esquecendo dele. Ou deixaram de se importar o suficiente. Até que um dia, num aniversário qualquer, decidiram comemorar numa churrascaria. E para não deixá lo sozinho, olhando paredes, resolveram que ele deveria ir também. No restaurante, com ar condicionado e música ambiente, colocaram a cadeira de rodas na ponta da mesa. Não por deferência, mas porque, naquele lugar, ele não incomodaria a passagem dos garçons. E ali ele ficou. Imóvel, calado, com o queixo quase encostado no peito e olhando para o nada, como sempre fazia. Até que alguém, e até hoje ninguém sabe quem nem porquê, colocou uma coletânea de chorinhos e serestas para tocar no sistema de som do restaurante.  Na primeira música, ele ergueu um pouco a cabeça e apertou os olhos, como se quisesse expulsar o burburinho e ouvir apenas a canção. Na segunda, ninguém na mesa percebeu, mas ele tamborilou os dedos no encosto da cadeira. E esboçou um sorriso. E a medida em que Orlando Silva, Jacó do Bandolim e Pixinguinha começaram a tocar e cantar, os olhos dele foram recuperando o brilho. Depois de tanto tempo imóvel e calado, ele sorriu de verdade. Ergueu a cabeça, levantou devagar os braços, e com os dedos indicadores apontando para cima, fez exatamente como fazia nos bailes, nos bares e no quarto escuro. Embalou a orquestra imaginária e sussurrou a letra inteira, sem errar nenhuma palavra. E assim, sorrindo e cantando, ele fez o mesmo com outra música, e com outra, e com outra. Em volta, os parentes choravam de alegria, sorriam, se abraçavam e diziam: ‘ele voltou, o boêmio voltou novamente!’  Foi assim até que tocou a última música e o sistema de som foi desligado. O  silêncio voltou a tomar conta do restaurante. E então a vida deixou de fazer sentido. Ele encostou o queixo no peito e, com lágrimas na face e um sorriso no rosto, fechou os olhos pela última vez. Foi assim, sorrindo, cantando e dançando, que o velho boêmio se despediu da vida. 

Por hoje é isso. Semana que vem tem mais. Até lá.


Raul Dias Filho - O autor é jornalista e repórter especial da Record TV

E-mail: rauldiasfilho@hotmail.com