Lembra das pharmácias?  

Publicado em 30/10/2020 - raul-dias-filho - Da Redação

Lembra das pharmácias?  

Dia desses precisei fazer alguns exames médicos. Uma situação que, a partir de certa idade, se transforma numa rotina que nos acompanha pelo resto da vida. Fiquei surpreso com a quantidade de exames que é possível fazer a partir de alguns mililitros de sangue e umas tantas gotas de urina. Descobri também que temos muitos colesteróis para cuidar. Tem o bom, o ruim, o mais ou menos e aquele que é indiferente, o famoso tanto faz. E quando esses exames se tornam frequentes, os nomes que antes soavam tão esquisitos acabam se tornando familiares. Olho o exame e já comento: “rapaz, olha só esses neutrófilos. Estão perfeitos! E a bilirrubina, então. Linda! ” Brincadeiras à parte, o fato é que esses exames supercompletos são uma mão na roda para os médicos. Através deles, conseguem fazer um diagnóstico preciso e elaborar o procedimento correto para que tudo caminhe bem. Por outro lado, esses mesmos exames não permitem que os jovens médicos exercitem com frequência a boa e velha prática do exame clínico, cada vez mais ausente nos consultórios. Ora direis, mas se o médico tem todas as respostas nos exames laboratoriais, pra que perder tempo com auscultações e apalpações? E eu vos direi, no entanto, que esse tipo de exame transmite conforto e confiança ao paciente. Como num passado não tão distante, quando os recursos e a tecnologia ainda engatinhavam e os médicos dependiam basicamente do exame clínico para fazer um diagnóstico. Como havia poucos laboratórios, e eles ficavam nas cidades maiores, um simples exame de sangue demorava semanas para chegar às mãos dos médicos que clinicavam nas cidades aqui da região. Sem contar que cada cidade tinha apenas um ou dois médicos para atender toda a população. Por falta de médicos, muitas vezes os partos eram feitos em casa, por parteiras. E havia também aqueles médicos informais que manipulavam remédios por conta própria. Era o caso de João de Brito, que vivia na zona rural, entre Muzambinho e Cabo Verde. Não se sabe se ele tinha alguma formação na área médica ou se era um autodidata, mas João de Brito preparava medicamentos por manipulação e ganhou o respeito de muitos pacientes que se curaram com os ‘remédios’ preparados por ele. Graças a Deus, lá em casa nunca precisamos dos seus serviços. Não por alguma desconfiança, mas porque ninguém teve nenhuma doença ou moléstia a ser curada mesmo. Na infância, o único remédio que tomávamos, se é que pode ser chamado de remédio, era uma colher diária de Biotônico Fontoura. Papai dizia que aquilo nos deixaria fortes e saudáveis. De vez em quando tomávamos também um outro, que era óleo de fígado de bacalhau. No rótulo tinha um homem com um peixe enorme nas costas. Esse tinha um sabor amargo e não deixou saudade. Outra coisa que tinha em casa era o que chamávamos de ‘caixinha de injeção’. Era um pequeno estojo de metal, retangular, com tamanho e formato parecidos com um controle remoto. Dentro havia uma seringa de vidro e uma ou duas agulhas. A seringa era grande e a agulha, dolorosamente grossa. Além de guardar, a caixinha era usada também para esterilizar a seringa e as agulhas. Para isso, enchia-se a caixinha de álcool, colocava-se a seringa e as agulhas e botava fogo até todo o líquido evaporar. Acho que, felizmente, nunca foi usada em casa. Aliás, naquela época, a pessoa só era levada ao hospital em casos graves ou que não conseguiam ser resolvidos pelos métodos caseiros. E foi assim que fui parar no hospital pela primeira vez na vida. Ainda criança, brincava na rua de terra quando, sem querer querendo, enfiei uma pequena pedra no nariz. Na tentativa de tirá-la, fui enfiando cada vez mais fundo. Quando começou a sangrar, o único remédio foi buscar socorro no hospital. Intervenção rápida e resolvida com uma pinça. Na semana seguinte, não satisfeito, coloquei um grão de feijão no outro lado do nariz e, para espanto do médico, lá estava eu outra vez no hospital. Na verdade, acho que as pessoas iam muito mais às farmácias do que aos hospitais. Naquela época, as farmácias, e os farmacêuticos, eram vistos como ‘prontos socorros’ de ocasião. Tem um mal-estar? Corre na farmácia. Ah, e diferente de hoje, que tem uma farmácia em cada esquina, naqueles tempos só havia uma, ou no máximo duas, em cada cidade. Em Cabo Verde, íamos na farmácia do Lamartine. Idoso, bem magro, cabelos branquinhos e com os óculos na ponta do nariz, seo Lamartine era sempre discreto e gentil. Em Muzambinho, a farmácia do Cassinho era uma referência e ele, conhecido por ser sempre muito atencioso. Tinha também a farmácia do Juquinha, que tinha a voz mansa, os passos curtos e uma gentileza inigualável. E ainda a do Salvador Machado, tão generoso que ficou conhecido como ‘médico dos pobres’. Ele atendia, na própria farmácia, as pessoas com casos menos graves que não tinham recursos para uma consulta médica. Ali, Salvador fazia exames clínicos e receitava os medicamentos. Muitas vezes, nem cobrava de algumas pessoas. Ou então, marcava na caderneta. Assim como nas vendas e mercearias, as farmácias também aceitavam o ‘fiado’. No fim do mês, o cliente recebia o salário, ia até a farmácia, zerava a conta e começava tudo de novo. Se bem me lembro, não havia cobrança de juros. Por isso, outro dia fiquei surpreso e até assustado com uma história que ouvi sobre uma compra numa farmácia de Cabo Verde. O diálogo entre a cliente e a vendedora foi mais ou menos assim: 

Quanto custa o remédio ‘tal’? 

Custa 17 reais a vista. 

E para marcar? 

184 reais. 

A cliente não acreditou, pensou que havia um engano, mas a vendedora confirmou. O preço do remédio a prazo era DEZ VEZES maior que o preço à vista. E não era um prazo estipulado, tipos dez parcelas, era simplesmente porque não estava pagando à vista. E parece que isso é uma prática comum nas farmácias da região. Os agiotas devem estar morrendo de inveja! Assim dá para entender porque, nos últimos tempos, as farmácias se multiplicaram. De repente surge uma em cada esquina. Parece brincadeira, mas isso é assunto grave e deve ser investigado. Como alguém pode cobrar juros escorchantes em cima de um item de primeira necessidade? Alô, Ministério Público, Defesa do Consumidor, vereadores, se for por falta de denúncia, não é mais! E não é difícil de apurar, hein, porque os valores vêm marcados no cupom fiscal. É tal negócio: pode até ser legal. Mas é muito imoral. E é uma pena terminar a coluna, que deveria ser de reminiscências, falando sobre um assunto tão árido. Só que, convenhamos, de amargo, bastam alguns remédios que somos obrigados a tomar.  Por hoje é isso. Semana que vem tem mais. Até lá.   

Raul Dias Filho
O autor é jornalista e repórter especial da Record TV
E-mail: rauldiasfilho@hotmail.com