Publicado em 16/04/2021 - raul-dias-filho - Da Redação
A música está presente em nossas vidas desde que nascemos. Afinal,
muitos de nós fomos embalados por canções de ninar antes mesmo de vir ao mundo.
Se você é mãe vai concordar comigo, ao lembrar de algum momento em que
acariciou a barriga e cantou baixinho, para o filho(a) que ainda estava no
ventre, a mesma canção que ouviu tantas vezes quando criança. Nossas vidas são pontuadas por uma trilha
sonora eterna, que se atualiza ou se renova de acordo com os momentos que
vivemos ou as fases que atravessamos. É assim para todos. O que muda, em alguns
casos, é o peso que algumas músicas podem ter na vida de alguém. Às vezes, elas
podem até mudar o destino de uma pessoa. Duvida? Pois aconteceu comigo. Quando
saí de casa pela primeira vez, segui um fluxo natural. Não existia ensino
superior nas cidades da nossa região e 90% dos estudantes iam para Campinas, em
busca de uma vaga numa faculdade qualquer. Eu fui nessa leva. Sem lenço nem
documento. E sem dinheiro também. Papai não tinha renda suficiente para me
manter em Campinas, por isso fui morar com meus tios, tio Ramiro e tia Marlene,
que me receberam, e sempre me tiveram como um filho. Era fim de ano. A ideia
era ganhar tempo e arrumar um emprego para, pelo menos, pagar a faculdade.
Naquela época, a melhor maneira de se candidatar a um emprego era fazendo
‘fichas’. Não existia essa de currículo e tals, você batia na porta das empresas,
bancos, lojas e etc, eles te recebiam, você preenchia uma ficha com seus
‘predicados’ e rezava para que eles te chamassem. E eu preenchi uma ficha assim
na Muricy. Ou melhor, Lojas Muricy. Era o fino da bossa. Pensa numa loja chic!
Na época não existia shopping e até hoje me pergunto se a Muricy não era um
experimento para tal. Ficava no centro de Campinas, ponto nobre, e trouxe uma
série de inovações para o comercio na época. Os produtos eram separados por
departamentos, tipos assim, no primeiro andar, moda masculina; no segundo, moda
feminina; no terceiro, eletrodomésticos; no quarto, esportes e lazer. Só que
não era só isso. A Muricy foi a primeira loja com escadas rolantes de Campinas!
Me lembro que muita gente ia até lá só para andar nas escadas rolantes. Sério!
Em alguns momentos, tinha até fila. O povo ia, subia por uma, descia por outra,
se divertia e ia embora feliz. Sem comprar nada. E foi nessa vibe que fui
contratado pelas lojas Muricy e acharam de me colocar como vendedor de discos.
Era fim de ano, quando o comercio contrata a rodo e depois demite da mesma
forma. O meu contrato, de experiência, valia por um mês. E foi um mês de muitas
descobertas. Primeira vez longe de casa, primeiro emprego registrado em
carteira, cheio de expectativas, bem recebido pelos novos colegas e
impressionado com aquele ambiente sofisticado. E me saí bem vendendo discos.
Acho que até a extrema timidez que eu tinha ajudou nas vendas, porque os
clientes meio que ficavam com dó e compravam para ajudar. Fato é que estava me
saindo muito bem e a gerente já tinha garantido que eu seria efetivado.
Importante lembrar que na época só existiam discos de vinil. Nada de CDs, DVDs
ou bluetooth, como hoje. Se quisesse ouvir música, tinha que ir na loja,
comprar o disco e levar pra casa. E como era final de ano, vendia muito. E
tinha dois discos que vendiam que nem água: Roberto Carlos e Richard
Clayderman. O quê? Você nunca ouviu falar de Richard Clayderman? Pois eu também
nunca tinha ouvido, pelo menos até aquele final de ano, quando pelo menos dois
de cada cinco pessoas que iam na loja compravam Richard Clayderman. Os outros
dois que restavam escolhiam Roberto Carlos e o ‘um’ comprava um disco qualquer.
Para quem não conhece, Richard Clayderman é um pianista que, entre outras coisas,
toca músicas natalinas, religiosas, etc. No piano, evidentemente. Ou seja,
chato né? Acho que o povo comprava porque era pra presente, pra dar pros
outros. Se fosse para a própria pessoa ouvir em casa, não comprava não. Ninguém
suporta ouvir três músicas natalinas seguidas no piano. Mas eu tinha que ouvir.
Porque o sistema de som do prédio era integrado. E o que eu colocava no toca
discos tocava nos alto falantes de todos os andares da loja. É o que chamam de
música ambiente, só que eu não sabia disso. E foi então que ali, já no final do
período de experiência, muito bem avaliado pela chefia, dono e senhor da
situação, resolvi que todos mereciam ouvir algo melhor que Richard Clayderman.
E coloquei Chico Buarque no toca discos. E nem deixei o disco inteiro rodar,
não, foi só uma música. Abaixei cuidadosamente a agulha na última faixa e
fiquei observando a reação das pessoas, esperando algo como ‘agora sim,
finalmente Chico no lugar de Richard Clayderman’! Mas não foi isso que
aconteceu. Sabe quando todo mundo para de repente, as pessoas olham umas para a
outras, alguns riem, outros arregalam os olhos e fazem cara de espanto? Então.
Foi assim. Sei que a música não tinha terminado ainda quando a gerente do
departamento chegou com o gerente geral e o diretor da loja, desligou o som e
perguntou: ‘quem pôs essa música?’’ ‘Eu’, respondi. E ela: ‘precisamos
conversar’. Foi meu último dia como vendedor de discos. A gerente realmente
gostava de mim e do meu trabalho mas explicou que não tinha como segurar: ‘veio
lá de cima e pediram sua cabeça. Se você fosse funcionário, seria demitido.
Como não é, não será efetivado’, explicou. A música que provocou tudo isso?
Geni e o Zepellin. Para quem não conhece, na música Chico conta a história de
um militar engalanado, conquistador barato, que chega em um zepellin para se
apossar de uma cidade e se encanta com Geni, que representa uma prostituta ou
travesti que sempre envergonhou a elite e pode, de repente, se transformar em
sua salvação ou redenção, ao se render aos caprichos do comandante. A história,
por si só, já era chocante para a época, tanto que poucas rádios a tocavam, e
tinha um trecho especialmente atrevido ou ousado, com uma palavra chula que,
embora toque em todas as rádios, por respeito a vocês, vou abreviar aqui:
“joga pedra na Geni
Joga b... na Geni
Ela é feita pra apanhar
Ela é boa de cuspir
Ela dá pra qualquer um
Maldita Geni!”
Como disse, Geni e o Zepellin é capaz de chocar até hoje. Agora,
imagina naquele tempo! Então, porque eu coloquei a música naquele dia? Porque
eu a achava genial. E continuo achando. E considero Chico Buarque como o maior
gênio vivo que temos. Um cara que, num futuro próximo, terá as obras estudadas
em escolas e faculdades e deverá ser reconhecido como o maior brasileiro de
todos os tempos. Quem não concorda, ok, mas é o que eu acho. Até porque ele me
ajudou nessa parada aí. Se não fosse por ele, ou pela Geni, eu poderia ter sido
efetivado, ter me transformado em um bom gerente de vendas e talvez não fizesse
a faculdade de jornalismo. Aí sim, eu iria lamentar porque amo muito o que
faço. E hoje olho com saudade para aquele mês de dezembro, quando trabalhei
como vendedor de discos nas lojas Muricy.
Por hoje é isso. Semana que vem tem mais. Até lá.
RAUL DIAS FILHO - O autor é jornalista e repórter especial da Record TV