O grão amargo do café

Publicado em 04/09/2020 e atualizado em 04/09/2020 - raul-dias-filho - Da Redação

O grão amargo do café

Esta semana acompanhei com preocupação e tristeza a situação de alguns cafeicultores da região. Apavorados com os boatos que falavam em fechamento ou falência de uma empresa de comercio de café que opera em Cabo Verde, Muzambinho e Botelhos, muitos produtores perderam noites de sono com a possibilidade de não receber pelo café que venderam. Escrevo essa coluna na quarta-feira, quando as notícias ainda são desencontradas e espero sinceramente que tudo se resolva da melhor maneira. A melhor maneira, claro, é que os produtores recebam tudo que tem direito. A boa notícia é que, até onde sei, os proprietários da empresa são pessoas honestas, trabalhadoras e, por certo, tentarão ressarcir todas as perdas. Se isso não acontecer, que a justiça seja feita em favor dos credores. Como? Através de liminares. No caso de insolvência da empresa e venda de patrimônio para ressarcimento das dívidas, os juízes têm poder suficiente para determinar que os primeiros a receber sejam os produtores e não a Receita Federal ou, pior ainda, possíveis agiotas. Aliás, não duvido que os agiotas, esta praga que se multiplica feito erva daninha, estejam esfregando as mãos, torcendo pela derrocada da empresa, e já à espreita de pequenos produtores endividados e, por isso mesmo, sem crédito nos bancos. Foi o que aconteceu em Muzambinho, tempos atrás, quando 90 mil sacas de café estocadas nos armazéns da finada Coomam (Cooperativa de Muzambinho) ‘desapareceram’ e cerca de 6 mil cooperados ficaram à míngua, sem café e sem dinheiro. Muitos perderam todos os bens que tinham. Outros lutaram bravamente e, às custas de muito suor e trabalho, conseguiram se recuperar. E agora se deparam com o mesmo pesadelo novamente. É muita crueldade. Mas o destino nunca foi benevolente com os pequenos produtores. Ao contrário do que imaginam as pessoas que moram em centros distantes, os cafeicultores de nossa região não são barões que vivem na base da sombra e água fresca. Pelo contrário. Quase 90% dos cafeicultores da região são pequenos produtores. Pessoas que dependem exclusivamente do café para sustentar suas famílias. Gente que trabalha de sol a sol e convive, quase sempre, com a incerteza. Desde o momento em que planta a semente, até a colheita, o produtor depende de inúmeros fatores para ter algum lucro com a safra. Fatores climáticos, inclusive. No inverno, que costuma ser rigoroso na região, o pequeno produtor vai para a cama rezando para que uma geada não arrase sua plantação. Tem o fator inclemente que se chama mercado. O preço talvez seja o mais inconstante do agronegócio. Varia praticamente todos os dias e oscila muito de um ano para o outro. É como um tiro no escuro. Você planta e, dependendo do número de pés que plantou, até sabe o quanto vai colher. Mas nunca sabe por quanto vai vender. Quando vende, boa parte do dinheiro está comprometida com empréstimos feitos durante o ano para custear a lavoura e a colheita. Não estou vitimizando os cafeicultores ou dizendo que sejam pobres coitados. Mas a grande maioria, certamente, não está entre os privilegiados que muitos imaginam. Por isso, eu entendo a aflição e até o desespero de alguns diante dessa situação. Muitos estão preocupados em simplesmente pagar as contas. Em não ter o nome ‘sujo’ na praça. Porque o homem da roça se conforma com as perdas, quando elas são inevitáveis e provocadas por fatores como clima ou mercado. O que ele não admite perder, jamais, é a honra e a dignidade. 

 

O dia que minha vó escreveu para o presidente da república. E ele respondeu. 

Não é de hoje que os pequenos produtores sobrevivem com dificuldade na roça. Isso explica o porquê dos sítios, e dos sitiantes, estarem desaparecendo. No lugar deles surgem chácaras com piscinas e visitantes ocasionais, de fim de semana. Nada de porcos ou galinhas. O mugido das vacas e o cheiro bom do curral ficam cada vez mais raros e distantes. Para se ter uma ideia de como esse ritmo alucinante de urbanização já chegou até nossa região, hoje, em Muzambinho, quase 80% da população vive na cidade. Isso é dado estatístico. Num município onde a base da economia continua sendo a agricultura. Mas houve um tempo em que a maior parte da população dos municípios da região vivia na zona rural. Tempos em que os animais de carga eram indispensáveis nos sítios e fazendas e quando o transporte dependia basicamente dos carros de boi. Foi nesse tempo aí que minha avó paterna, a vó Rita, se casou com meu avô, Bertolino, e juntos foram viver no sítio Cambuí, em Muzambinho. Bonita, de cabelos longos, olhos verde claros e personalidade forte, ela conquistou o coração de meu avô. Tanto que, naquele tempo, onde os maridos tinham a primeira e a última palavra e sempre escolhiam os nomes dos filhos, ele homenageou a sua Rita colocando nomes que começavam com a letra R em todos os filhos que tiveram. E foram seis homens: Raul, Romildo, Romilton, Roberto, Ramiro e Roque. Eram tempos difíceis. Havia terra, mas não existiam recursos nem condições de cultivo. E os tempos ficaram piores quando meu avô faleceu, em 1960, deixando a vó Rita sozinha com os filhos, com o sítio, algumas contas para pagar e nenhuma renda para o sustento de todos. Ela resistiu bravamente durante alguns anos, mas a situação era mesmo insustentável. O sítio tinha água em abundância, boa topografia, bons pastos, área para plantio, mas eles não tinham vacas para colocar no pasto nem dinheiro para comprar sementes e plantar. Foi quando vó Rita, sem ter a quem recorrer, escreveu uma carta o presidente da república. Isso aconteceu em 1963. O presidente era João Goulart, o Jango, que havia assumido em 1961 depois da renúncia de Jânio Quadros. Como destinatário, ela colocou simplesmente: “Para João Goulart. Presidente da República. Brasília” Na carta, a vó Rita contou a penosa situação que vivia e o quanto necessitava de ajuda para cultivar as terras. Não pediu esmolas. Pediu ajuda. E aqui, pensando nisso, eu só consigo imaginar que caminhos tortuosos essa carta percorreu até chegar às mãos do presidente. Brasília ainda era um canteiro de obras recém inaugurado. O Brasil vivia tempos conturbados politicamente e Jango era constantemente pressionado pelos militares. Por certo, tinha muitas outras prioridades. Como essa carta poderia chegar às mãos dele? E, se chegasse, qual a chance de ele ler e se sensibilizar o suficiente para pedir alguma providência? Pois aconteceu. Alguns meses depois, para surpresa de todos, um telegrama assinado pelo presidente João Goulart foi entregue no sitio Cambuí. Escrito URGENTE em letras grandes, o telegrama dizia que a vó Rita deveria ir a uma agência do Banco do Brasil em Poços de Caldas, onde havia um empréstimo liberado especialmente para ela. No banco, ela foi recebida com atenção especial, não pelo gerente, mas por um diretor. Com o dinheiro, ela comprou vacas de leite, sementes e alguns maquinários. E o sítio prosperou. Minha vó nunca deixou nenhuma parcela atrasar, o empréstimo foi pago pontualmente e o presidente Jango, tido por muitos como comunista, deposto, morto no exílio, sempre teve a gratidão de nossa família. Conto essa história para mostrar como os tempos mudaram e os políticos também. É impensável imaginar que hoje uma carta, um email ou um zap enviado à Brasília vá ser lido, e atendido!, pelo presidente da república. Nem tampouco por um senador ou deputado. Não consigo também imaginar, nos tempos atuais, uma viúva desamparada com seis filhos vivendo em um sítio. Porque? Porque os tempos mudaram, meus amigos. E não mudaram para melhor. Por hoje é isso. Semana que vem tem mais. Até lá.


Raul Dias Filho

O autor é jornalista e repórter especial da Record TV / E-mail: rauldiasfilho@hotmail.com