O Monstro do Maranhão

Publicado em 09/10/2020 - raul-dias-filho - Da Redação

O Monstro do Maranhão

Quando alguém escolhe a carreira do jornalismo, deve saber que seu ofício será o de contar histórias. Histórias da vida. E é isso que fazemos na maior parte do tempo. Meu amigo, o experiente jornalista Afonso Mônaco me contou que, certa vez, um repórter estava dando uma palestra numa faculdade quando um aluno perguntou: “Quais foram os melhores momentos de sua carreira?’ E ele respondeu na maior tranquilidade: “Ah, os melhores momentos, sem dúvida nenhuma, foram durante as férias, quando eu estava descansando!’ A história, engraçada, serve para mostrar que muita gente se desliga completamente das notícias enquanto descansa. Eu até tento, mas confesso que não consigo virar totalmente a página. Sabe porquê? Porque vivencio cada reportagem que faço, mergulho fundo na história e me aproximo dos dramas de cada personagem. Algumas vezes sofro junto com eles. Nunca me arrependi de nenhuma abordagem ou encaminhamento de reportagem, mas confesso que o desfecho de uma história que contei, alguns anos atrás, me desnorteou um pouco. O personagem da história se chamava José Agostinho Bispo Pereira, um lavrador de 55 anos que morava na zona rural de Pinheiro, no interior do Maranhão. José Agostinho tinha várias filhas e abusou sexualmente delas durante muitos anos. Como os abusos se repetiam, as meninas ficaram grávidas. Uma das filhas teve um filho dele. E outra teve sete filhos! Ou seja, ele era pai/avô de 8 crianças. Os abusos começaram quando uma das meninas tinha apenas doze anos de idade. E continuaram por muito tempo, até que ele foi denunciado por alguns vizinhos e preso. Então fui até a cidade de Pinheiro fazer a reportagem e entrevistei José Agostinho na delegacia e, ao contrário do que imaginava, o pai pedófilo não despertou em mim sentimentos como raiva ou nojo. Pequeno, com pouco mais de 1,60m de altura, magro e com os cabelos rareando, José Agostinho não parecia ser um pedófilo ou um maníaco sexual como estamos acostumados a ver. Sempre de cabeça baixa e falando pausadamente ele mostrava surpresa por estar encarcerado. Naquele momento cheguei a imaginar que ele não fez o que fez porque era dominado por uma tara incontrolável. Fez porque achava normal. E as pessoas que conheciam a família dele também achavam normal. Porque todos sabiam e se calaram durante décadas. No interior do Maranhão, vivendo totalmente isolados, sem a chance de conviver com pessoas que lhe ensinassem valores básicos, José Agostinho e as filhas viviam como bichos. E passaram a agir como tal. Durante a entrevista ele me passou a impressão de não ter noção da gravidade daquilo que tinha feito. Mais tarde me cobraria por, mesmo por alguns momentos, ter acreditado na inocência dele. Na verdade, tenho o péssimo hábito de acreditar nas pessoas e nas palavras delas. Essa crença na pureza dele começou a cair quando fui até a casa onde a família vivia. Era no meio do nada, totalmente isolada. Foi preciso percorrer quilômetros de carro pela estrada, depois um bom pedaço a pé numa trilha e, por fim, mais um longo trecho de rio, numa canoa, para chegar até a casa. As filhas dele, com os filhos ainda pequenos nos braços, estavam confusas e queriam saber porque o pai estava preso. E não conseguiam entender que José Agostinho havia cometido um crime hediondo e estava pagando por ele. Condenado por estupro, abandono de incapaz e outros crimes, ele foi transferido para o presídio de Pedrinhas, que mais tarde ficaria conhecido no Brasil e no mundo como palco de rebeliões e massacres. Tudo isso foi contado na reportagem e ela repercutiu bastante. A relação incestuosa de José Agostinho chamou a atenção do mundo e ele foi chamado pela mídia internacional de ‘Fritzl Brasileiro’, numa comparação com o austríaco Josef Fritzl, um maníaco que manteve a filha trancada em um porão por 24 anos e a estuprou sistematicamente, gerando seis filhos dele. Mas o apelido que pegou mesmo foi o de ‘Monstro do Maranhão’, que me pareceu injusto na época porque não consegui enxergar um monstro naquele homem franzino e humilde. Mais tarde, refletindo sobre tudo aquilo, pensei que pudesse ter sido ingênuo por ‘comprar’ a versão que ele contou e acreditar na inocência dele. E essa dúvida me perseguiu por um bom tempo até que, certo dia, indo de carro para o trabalho, ouvi no rádio uma notícia sobre uma rebelião no presídio de Pedrinhas onde vários presos haviam sido torturados e mortos. Entre eles, José Agostinho. Durante o levante, os detentos rebelados haviam invadido o ‘seguro’ onde José Agostinho estava, com mais cinco acusados de pedofilia ou estupro, e fizeram uma carnificina. Todos os seis foram mortos. Quatro deles, inclusive José Agostinho, foram decapitados e tiveram as cabeças expostas como macabros troféus. Fiquei imaginando qual teria sido a reação das filhas dele, vítimas contumazes da pessoa que deveria lhes oferecer carinho e proteção. Como já disse, me envolvo bastante com os personagens das reportagens que faço, mas esse envolvimento quase sempre termina junto com a reportagem. Quando acaba, quando o texto fica pronto, a matéria é editada e vai ao ar, tento virar a página. Todos temos fardos suficientes para carregar e não é nem um pouco saudável arrumar cargas extras e assimilar a dor de pessoas que não fazem parte de nosso dia a dia. Mas a história de José Agostinho me perseguiu durante um bom tempo. E até hoje me pergunto: qual a verdadeira face do monstro do Maranhão?  Por hoje é isso. Semana que vem tem mais. Até lá.


Raul Dias Filho - O autor é jornalista e repórter especial da Record TV

E-mail: rauldiasfilho@hotmail.com