Publicado em 18/09/2020 - raul-dias-filho - Da Redação
Outro dia, comentando sobre as queimadas no Pantanal, lembrei que, de todos os lugares em que já estive, o Pantanal foi o que me proporcionou a maior sensação de paz. Ok, todos temos esses momentos de paz, mas são efêmeros, passageiros, dependem muito da circunstância. Lá no Pantanal, eles acontecem todos os dias e são muito mais duradouros. E muita coisa contribui para isso: o clima, as águas calmas dos rios, a beleza das aves, o jeito indolente e desajeitado do tuiuiú, a tranquilidade dos jacarés, o pôr do sol, o brilho da lua, enfim, é um lugar onde parece existir um equilíbrio perfeito. Ou parecia, né, até dois meses atrás, quando os incêndios começaram a devastar esse pedaço de paraíso. Isso mesmo, dois meses atrás! São mais de sessenta dias queimando. E ninguém tomou medidas drásticas, severas, efetivas, para controlar as queimadas. Todos sabemos que fogo tem que ser combatido no início. Depois que as chamas se alastram não adianta mais. As notícias falam em 3 milhões de hectares queimados. Sinceramente, eu não consigo imaginar o que isso representa em tamanho, dizem que é uma área maior que Israel, mas sei que milhares de animais foram carbonizados juntos com a vegetação. Existem aves, como papagaios e araras, que fazem ninhos nas árvores ocas. O fogo vem e consome tudo, árvores, ninhos, ovos, filhotes. É uma devastação como nunca se viu antes no Pantanal. Fruto de uma política governamental controversa em relação ao meio ambiente e também do aquecimento global. A cada ano que passa, os sinais de descontrole no clima são mais evidentes. Invernos mais quentes, verões escaldantes, longas estiagens, secas prolongadas, geadas inesperadas... até furacão começou a aparecer no Brasil. Eu conheci o Pantanal na década de 90, quando fazia um programa que tinha a pesca como chamariz e os rios como fios condutores. Através deles, mostrávamos as regiões, os personagens e o meio ambiente. Dizem que a primeira vez a gente nunca esquece e, neste caso do Pantanal, não seria possível esquecer mesmo. Passamos uma semana numa fazenda que fica às margens do rio Negro, pelos lados de Aquidauana, num lugar isolado, onde só se chega de avião. Fomos para lá num monomotor que balançou tanto durante o voo que cheguei revirado do avesso. E sabe quem nos esperava na fazenda? Almir Satter, o dono daquele pedaço de paraíso. Imagine só, uma semana navegando pelo rio Negro tendo Almir Satter como piloteiro. Nos finais de tarde, depois da pescaria, a gente acendia uma fogueira nas prainhas de areia para assar os peixes enquanto ouvia Almir tocar a viola e cantar versos como esse:
Quando uma estrela cai
No escurão da noite
E um violeiro toca suas mágoas
Então os ‘óio’ dos bichos
Vão ficando iluminados
Rebrilham neles estrelas
De um sertão enluarado...’
Como dizem os goianos, uma coisa dessa não tem base nem quantia. Mas hoje a realidade no Pantanal é bem diferente. Os pantaneiros olham para o céu e imploram ajuda divina, em forma de chuva, para apagar o fogo que ameaça consumir tudo. A viola de Almir, que tocava nas noites de luar, deve estar em silêncio. Agora, só os ‘óio’ dos bichos continuam iluminados. Mas o que rebrilham neles, por certo, não são estrelas de um sertão enluarado.
A dura vida do ‘pescadô’ - Esse tempo de ‘repórter pescador’ me traz muitas e boas lembranças. E me lembrei agora de uma passagem muito engraçada que aconteceu nessa época. Por causa da profissão, durante alguns anos, tive o privilégio de conhecer e pescar nos principais rios do Brasil. Rio Negro, Amazonas, Tapajós, Paraguai, Araguaia, São Francisco, Cristalino, São Benedito, Juruena, enfim, a cada mês eu estava num rio diferente. Mas nem tudo eram flores. Apesar das paisagens maravilhosas e de muitos peixes, também enfrentava muitos perrengues. Foi nessa época, depois de uma sequência incomum e cansativa de viagens, que vim de férias para o sítio Cambuí e fui convidado pelo meu primo e compadre Romilton para uma pescaria. Iríamos numa turma, Romilton, eu, meu primo Claudinho Palma e alguns amigos de Cabo Verde. O lugar era um rancho às margens do rio São Francisco, na região de Piumhi. Para quem não sabe, a nascente do São Francisco fica na Serra da Canastra. É um fiozinho d’água que serpenteia, tímido, pela serra, forma a linda cachoeira Casca D’Anta, vai encorpando, ganhando força com outros afluentes até se transformar nesse riozão maravilhoso que corta boa parte do nosso país. E Piumhi fica no pé da serra. Pois bem. Depois de horas numa caminhonete, chegamos no lugar e encontramos um rancho bem caído, quase uma tapera mesmo. Mas quem tá na chuva é para se molhar. Aliás, não parava mesmo de chover. Arrumamos tudo e no dia seguinte a turma saiu para pescar. E é aí que a história fica boa. No primeiro dia, eu e o compadre resolvemos ficar no rancho. Comendo um queijinho, fritando tira gosto, ouvindo moda de viola e tomando cachaça. Foi tão bom que no segundo dia resolvemos ficar no rancho de novo. Só que entre esses amigos de Cabo Verde estava o Delei, que é apaixonado por pescaria. Sabe um pescador que prepara a tralha uma semana antes, separa tudo direitinho e até sonha com os peixes? Esse é o Delei. O primeiro a sair para o rio e o último a voltar. Só que aconteceu o seguinte: nós fomos na época errada. Era mês de junho, inverno, o rio estava muito cheio, água barrenta, correnteza forte e nada de peixes. Como eles voltavam de mãos vazias, no terceiro dia eu, compadre e Claudinho ficamos de novo no rancho, tomando a cachacinha, comendo queijo e ouvindo moda de viola. E nesse dia choveu ainda mais forte. Quando eles voltaram do rio, sujos de lama, molhados, tremendo de frio e sem nenhum peixe, Delei estava com cara de poucos amigos. Eu estava sentado na varanda quando ele veio, parou na minha frente ainda com as varas na mão e perguntou:
“Uai, Raulzinho, você não vai pescar nenhum dia?”
A resposta saiu naturalmente, sem nenhuma maldade.
“Sabe o que é, Delei? Eu pesco o ano inteiro. Então nas férias eu descanso. E pra descansar, eu não pesco.”
Ele ficou olhando pra mim, pensativo, coçou a cabeça, olhou pro chão tentando encontrar alguma lógica naquilo, olhou pra mim de novo e disse bem alto, inconformado:
“Ah, vai pro inferno com um trem desse, uai!” E saiu pisando duro pra dentro do rancho.
Por hoje é isso. Semana que vem tem mais.
Até lá.
Raul Dias Filho
O autor é jornalista e repórter especial da Record TV
E-mail: rauldiasfilho@hotmail.com