O primeiro 'furo' a gente nunca esquece...

Publicado em 07/05/2021 - raul-dias-filho - Da Redação

O primeiro 'furo' a gente nunca esquece...

Como contei aqui nas duas últimas colunas, o começo de minha carreira como repórter foi marcado pelo acaso, pelo imprevisto, mas também pelo esforço e perseverança. O talento, eu penso, em todas as atividades, você aprimora ao longo do caminho. Pois bem, depois das primeiras experiências como repórter, peguei o gostinho pela rua. Mas como tudo que é bom dura pouco, a minha fase ´repórter´ terminou bruscamente. Bastaram aquelas entrevistas com Newton Cardoso e Baby Consuelo para os repórteres que tinham estado doentes, ausentes ou sido abduzidos, voltarem. E lá fui eu de volta para a rádio-escuta. Ali eu falava com muita gente, todos os dias. Durante a ronda, ligava pra tudo que é prefeitura, delegacia, hospital, postos da PM, rádios, enfim, tinha um repertório imenso de fontes. Gente que eu só conhecia por telefone. Mas como falava com todos, todos os dias, acabei ficando 'amigo' da maioria. E essa cumplicidade com os contatos me ajudou bastante quando surgiu a oportunidade de mais uma matéria. De novo, com a equipe da noite, mas desta vez para cobrir um show que Caetano Veloso faria em Itajubá. Como das outras vezes, a matéria caiu no meu colo de repente. Mas, antes, deu tempo de ligar para meu contato em Itajubá, o cara com que eu falava todos os dias na ronda, que deu a maior força. E disse o seguinte: 

 'Raul, sei o hotel onde o Caetano está. Vou te passar o endereço e você vem mais cedo pra Itajubá, passa no hotel antes do show e grava a entrevista com ele. Aí depois, no show, você faz só as imagens e pronto!"  

Maravilha. Não podia ser melhor. Tudo resolvido! Na minha cabeça, eu já estava diante da visão da infinita beleza. Anotei o endereço e pegamos estrada, sem lenço, sem documento, nada no bolso ou nas mãos. Chegando em Itajubá, fomos direto para o hotel. Na recepção, perguntei por Caetano e disseram que ele estava na sala de jantar. De fato, estava. Na mesa, só ele e um outro cara, com uma cabeleira imensa. Me aproximei devagar, me agachei ao lado da mesa, na esperança que o mundo ficasse odara, e disse: 

'Oi, Caetano. Tudo bão ? Já jantou ?'  

E ele, sem entender nada, mas sorrindo, talvez pensando que fosse um fã, só concordou com a cabeça, enquanto limpava a boca com o guardanapo.  

- 'Então... eu estava esperando você terminar de comer pra vir te pedir uma coisa. É que sou repórter e queria ver se você podia gravar uma entrevista com a gente aqui no hotel, antes do show. O que você acha ?'  

Ele arqueou a sobrancelha, ameaçou um sorriso mas foi interrompido pelo rapaz que estava jantando com ele, o da cabeleira, que teve chilique:  

- 'Mas que petulância! Como tu se atreve?? Não vê que estamos jantando?? Caetano está cansado, está concentrado e tu vem perturbar nossa paz?' 

Acho que o rapaz era o empresário ou agente de Caetano. Sei que o ignorei, e insisti:   

 'Caetano, esta é a primeira vez que saio pra fazer uma reportagem. Se eu não conseguir uma entrevista com você, acho que não vou ter mais nenhuma chance. Por favor...' Nem deu tempo de completar. O rapaz se levantou, pegou Caetano pelo braço e já foi saindo:  

- 'Que impertinência! Vamos Caetano, vou reclamar na recepção. Imagine!'  

Mas antes, sei lá porquê, ele se virou pra mim e disse  

-' E tu, meu rei, se quiser, vai no camarim depois do show que ele fala com tu'  

´Fala mesmo?? Tá fechado??'  

Ele não respondeu e saiu rápido, escoltando Caetano. Interpretei o silencio como um ‘sim’ e dali fomos direto para o ginásio onde aconteceria o show. Chegando lá, seguimos direto para o camarim. Entramos numa boa, porque naquela época equipes de televisão ainda tinham moral, e ali ficamos, num canto. De repente, Caetano entrou, vestido com uma bata colorida, e começou a andar em círculos, com os olhos fechados. Estava se concentrando para o show. Nunca esqueci aquela cena. Não imaginava que um músico tão experiente, e tão grande na história, se preparasse com tanto esmero para se apresentar em um modesto ginásio no interior de Minas. E estava ali, encantado, vendo aquilo quando escutei um grito e vi o agente dele, aquele rapaz que estava no almoço, se descabelando e chamando a polícia. Foi um escândalo. Ele gritava, nos chamava de invasores, enquanto eu tentava pedir desculpas e achar a porta da saída. Nisso, quem aparece bem na minha frente, assim, do nada?? Caetano Veloso. Ele me olhou candidamente e disse:  

'Menino, mas você é persistente mesmo. Vai, liga a câmera e faz a entrevista que você quer então. mas tem que ser rápido que o show tá pra começar'  

Só ouvi o grito do cinegrafista: 'Acende a luz e bate o branco pra mim!!! (bater o branco é balancear a câmera). Em seguida, disse:  

'É teu, Raul!!!'  

E naquele exato momento, meia lua inteira, luzes morrendo nesse espelho que é nossa cidade, me bateu o maior branco da vida. Estava no camarim, com o microfone na mão, Caetano diante de mim, sorrindo, e eu procurava na mente alguma coisa para perguntar e não achava. O cinegrafista insistia: 

'Vai Raul, é teu, vai!'  

Fiz quatro perguntas. Todas, tolas, inocentes, ingênuas. Perguntei o que ele achava de estar fazendo um show no sul de Minas. E Caetano disse que era bom demais, que as montanhas eram inspiradoras, que estar na terra de Drummond e Milton já era, em si, uma poesia. Perguntei porque fazia poucos shows em Minas, e ele respondeu o óbvio ululante:  

'eu venho com o maior prazer, mas tenho que ser convidado, né?'  mas se estendeu falando mais sobre Minas, sobre os mineiros, as montanhas, os doces e a poesia. Parecia que ele queria mesmo falar. Fiz mais duas perguntas absolutamente banais e ele respondeu na maior boa vontade. Depois se despediu e ainda disse, candidamente:  

'Conseguiu, né ? Boa sorte na sua carreira'.  

O agente de Caetano então o pegou pela mão e o direcionou para o palco. O show já ia começar. Quando saímos, o cinegrafista perguntou: 

'Raul, não acredito! Que perguntas foram aquelas que você fez pro Caetano?'  

Eu sabia do que ele falava. Podia ter perguntado para Caetano sobre política! Estávamos em plena corrida eleitoral, tanto que Caetano, engajadíssimo, abria os shows dele cantando 'Lula-lá, brilha uma estrela...' Mas não! Perguntei o que ele achava de cantar em Minas. Podia ter perguntado sobre o próximo projeto dele. Mas não! Perguntei porque ele não cantava mais vezes em Minas. Estava envergonhado. Quase pedi pra apagar tudo. Mas deixei passar. Fizemos imagens do show, entrevistei alguns fãs e voltamos para Varginha. Gravei um texto curto, chamando pelo show, pela expectativa das pessoas e encerrando com um clipezinho dele cantando. Deixei as fitas na mesa da editora e fui pra casa dormir. No dia seguinte, só iria para a redação no final da tarde. E fiquei esperando a matéria no jornal do meio-dia. Logo na escalada veio a manchete: 'Caetano canta e fala em Itajubá'.  'Canta e fala ??', pensei comigo. 'Que chamada mais sem noção!'  Mas a matéria encerrou o jornal. E me lembro da cabeça, chamando o vt. Era mais ou menos assim: "Caetano Veloso fez um show histórico ontem a noite em Itajubá. Cantou os principais sucessos da carreira. E deu uma entrevista exclusiva ao repórter Raul Dias Filho, rompendo um silêncio que já durava cinco anos." A entrevista foi exibida também no Jornal Hoje, em rede nacional! Foi só uma fala rápida do Caetano, sem qualquer referência ao repórter, mas destacando que, depois de cinco anos de silêncio, ele tinha feito as pazes com a imprensa. Quando cheguei na redação, mais tarde, fui festejado por todos. A chefia deu os parabéns e disse que, a partir daquele dia, eu faria parte do quadro de repórteres da emissora. E foi assim que tudo começou. Com um ‘furo’ que alguns podem chamar de casual mas que, eu sei, foi fruto também da persistência, do esforço, da vontade de trilhar um caminho e realizar um sonho. Sonho que continua se realizando e se renovando a cada entrevista, a cada reportagem.  

Ps: Infelizmente, foi a primeira e última vez que entrevistei Caetano. Infelizmente, entrevistas com cantores e poetas se tornaram raras na televisão. Gostaria muito de entrevista-lo novamente. Para contar sobre esse episódio, falar sobre sonhos que se realizam e, quem sabe, repetir as mesmas perguntas inocentes daquela época. 

 

Por hoje é isso. Semana que vem tem mais. Até lá.  


RAUL DIAS FILHO - O autor é jornalista e repórter especial da Record TV

E-mail: rauldiasfilho@hotmail.com