O SEXO DOS ANJOS

Publicado em 13/11/2020 - raul-dias-filho - Da Redação

O SEXO DOS ANJOS

Sabe aquela canção de Milton Nascimento? 

 “Certas canções que ouço 

Cabem tão dentro de mim 

Que perguntar carece: 

Como não fui eu que fiz?!” 

Pois assim como o genial Milton, também sou assaltado, vez ou outra, por uma sensação parecida. Não em relação à alguma música, claro, até porque não sou compositor e canto mal toda vida. Acontece quando vejo uma reportagem que gostaria de ter feito. Ou um texto que gostaria de ter escrito. Não tem nada a ver com inveja. Nem frustração. É simplesmente admiração por aquilo que outros conseguem traduzir de uma forma diferente e, muitas vezes, melhor do que a gente. Isso aconteceu comigo, anos atrás, quando li um texto sobre pedofilia escrito por Luis Fernando Veríssimo e, na sequência, por acaso, fiz algumas reportagens sobre o mesmo tema. As duas primeiras matérias foram feitas nas cidades de Tefé e Coari, no Amazonas. Em Tefé o acusado de abusos infantis era o juiz da cidade. Em Coari, o prefeito. E a terceira reportagem foi em Rio Claro, no interior de São Paulo. Lá, o agressor era um padre. Qual a diferença entre elas? Apenas o disfarce usado pelos pedófilos. Enquanto um se escondia atrás de uma toga, outro usava paletó e gravata. E o último, batina. Em comum, o fato de se aproveitarem de cargos, posições e circunstâncias para roubar a infância de inocentes e abalar a estrutura de muitas famílias. Um tipo de crime que, quando cometido por um padre, adquire outra dimensão. Quando alguém escolhe uma religião, imediatamente cria, mesmo inconscientemente, uma relação de dependência espiritual com aqueles que dirigem a igreja. Sejam eles, padres, pastores ou rabinos. O caráter dessas pessoas nunca é colocado em dúvida e elas acabam se tornando, para a família, modelos de comportamento. E conquistam a confiança dos pais. Quando esta confiança é traída de uma maneira tão mesquinha e perversa, o mundo, para estes pais, desaba. Em Rio Claro, entrevistei as mães de três meninos que haviam sido abusados por um padre famoso na região, chamado Hélio Aparecido Alves de Oliveira, e conhecido como Padre Helinho. Na época, ele era diretor de uma faculdade católica e do Colégio Claretiano, além de dirigir também a TV Rio Claro. Padre Helinho despontava como um desses padres midiáticos que cantam, apresentam programas de televisão e se tornam grandes vendedores de discos e livros. Pois bem, esse padre abusou dessas crianças durante uns dois anos e ainda contou com a ajuda e a complacência de uma coordenadora pedagógica, que mais tarde também seria condenada pela justiça. Durante as entrevistas com as mães, uma delas me contou detalhadamente como tudo aconteceu, como o padre se aproveitou da fé e da confiança dos pais para abusar do menino e, depois, como a criança foi dando os sinais de que algo errado estava acontecendo. Ela disse que, certa vez, o menino iria passar um fim de semana na casa do padre, mas, antes, perguntou se podia levar uma corrente e um cadeado com ele. A mãe perguntou por que, e a criança, chorando, falou que era para colocar na porta do quarto porque assim o padre não faria nada com ele. Foi quando ela descobriu os abusos. Enquanto contava, a mãe chorava o tempo todo. Era um choro tão sentido, tão triste, que vinha do fundo do coração de mãe, que durante toda a entrevista chorei com ela. Uma coisa é ver esse depoimento na tevê, com a mãe escondida por uma penumbra e com a voz distorcida. Recursos usados para preservar a identidade da mãe e, principalmente, da criança. Outra coisa é estar frente a frente, olhando nos olhos, percebendo as lágrimas que rolam a todo instante, as pausas na fala, o soluço incontido, enfim, imaginar a dor que um coração de mãe consegue suportar. Em um determinado trecho que não foi ao ar, ela me explicou como percebeu os sinais enviados pelo filho, que tinha nove anos de idade. Alguns foram literalmente descritos através de desenhos, feitos no caderninho da escola. Ela contou que “os desenhos dele eram sempre matando, sempre passando a faca no pescoço de alguém, sempre tinha gotas de sangue. E um determinado desenho me chamou a atenção... ele fez um cavaleiro com um revólver na mão e o revólver apontava para o pênis do homem deitado no chão. As balas saíam do revólver e batiam ali...” Não consigo imaginar a dor, a revolta e a indignação dos pais ao ouvir algo assim. E ao descobrir que os agressores são justamente aqueles que deveriam oferecer proteção e afeto aos seus filhos. Quem consegue ficar indiferente? O alto clero da igreja católica ficou. A mesma mãe de Rio Claro me disse que jamais foi procurada por alguém da igreja católica ou do colégio Claretiano: “nunca perguntaram se nós estávamos precisando de ajuda, se as crianças estavam precisando de ajuda, como estava o psicológico... O que fizeram na época foi escrever uma matéria nos chamando de mentes insanas, de mulheres loucas, de psicopatas. Acobertaram.” Durante anos, ou séculos, foi esta mesma cumplicidade, a do silêncio permissivo, que permitiu que criminosos de batina abusassem de crianças. Entre dogmas que remetem à pré-história e a proteção incondicional a seus sacerdotes, a Igreja pecou pelo acobertamento, omissão e conivência. O preço, um dia, será cobrado.  Por hoje é isso. Semana que vem tem mais. Até lá. 

Raul Dias Filho - O autor é jornalista e repórter especial da Record TV
E-mail: rauldiasfilho@hotmail.com