Publicado em 06/11/2020 - raul-dias-filho - Da Redação
Em São Paulo existe um lugar chamado ‘cracolândia’. O nome já entrega mas vou explicar: é o lugar onde vivem os viciados em crack da cidade. Ou ‘dependentes’, como manda a cartilha do ‘politicamente correto’ que, cá entre nós, é um grande e infindável porre. Enfim, esse lugar já foi mostrado várias vezes em reportagens na televisão mas nada é mais impactante e assustador do que ver aquilo ao vivo. Estive lá, alguns anos atrás, e fiquei realmente impressionado com a cenas. A maior parte delas remetia aos mais realistas filmes de zumbis, aqueles mortos vivos que caminham sem rumo. Neste filme de horror da vida real, a maioria dos ‘personagens’ fica sentada, olhando para o nada, enquanto outros andam para lá e para cá, sem rumo. Alguns dias atrás, casualmente, voltei a passar pela cracolândia. E me assustei demais com a quantidade de pessoas que agora habitam aquele pequeno inferno. O número de pessoas mais que duplicou. Não sei se pelo efeito da pandemia, da economia ou das pancadas da vida, mas é impressionante como exército de zumbis aumentou tanto e continua crescendo dia a dia. Ao mesmo tempo, fiquei imaginando como estas cenas estão distantes e soam quase irreais para quem mora no interior, principalmente por aqui, nas cidades do sul de Minas. E então, me pergunto: o quanto estão distantes? E por quanto tempo? Será que, algum dia, alguma de nossas pacatas e tranquilas ruas se transformará em acampamento e dormitório para viciados insones e sedentos? Não deixa de ser uma possibilidade. Uma realidade impensável não muito tempo atrás, quando todos os moradores de nossas ‘pequenas cidades’ sabiam de cor e salteado quem eram os ‘maconheiros’ que ameaçavam a paz social. Interessante como, naquela época, os ‘maconheiros’ eram vistos como ameaças para a estabilidade das famílias e horrível exemplo para as crianças. Hoje, muitos pais de família recebem, toleram ou celebram traficantes de drogas pesadas em suas casas. Dinheiro e poder fazem toda a diferença. E a diferença é que os ‘maconheiros’ de décadas atrás eram, na verdade, inofensivos usuários da maconha. Hoje, porém, sei que a realidade é diferente em nossas cidades. As drogas são muito mais pesadas, o tráfico está mais estruturado e desafia a polícia e a estrutura de muitas famílias. A pergunta é: será que esse exército de traficantes e zumbis que habita as grandes cidades chegará aqui, algum dia? A resposta é: não sei. Espero, sinceramente, que não, mas tudo vai depender de como esse desafio será enfrentado. Pelas autoridades, que devem exercer prevenção e combate, e pelas famílias, que devem exercitar educação e controle. É importante, porém, não confundir traficante com mendigo. Nem todos que estão nas ruas vivem ou dependem de drogas. Me lembro bem de quando fiz uma reportagem sobre moradores de rua, alguns anos atrás. Aliás, para ser justo, peguei carona num brilhante trabalho de reportagem feito pelo produtor Lúmi Zúnica, colega peruano que vive há muitos anos no Brasil e com quem tive a honra de trabalhar algumas vezes. Na época em que essa reportagem foi feita, ele se disfarçou de mendigo e descobriu que contrabandistas chineses estavam usando os moradores de rua para lavar dinheiro. Usavam, na verdade, a identidade dos mendigos para trocar dólares por reais ou enviar dinheiro para o exterior. E Zúnica se transformou literalmente em mendigo. Os maquiadores da Record fizeram um trabalho perfeito e, durante três semanas, Zúnica viveu entre os maltratados e maltrapilhos de São Paulo. Nesse tempo, descobriu muita coisa, além da pilantragem dos contrabandistas. Encontrou e conheceu pessoas que jamais imaginamos morar nas ruas. Ele me contou sobre um certo ‘Jacinto’ que conheceu no abrigo. O cara falava fluentemente português, inglês, italiano, espanhol, árabe e até alguns dialetos indígenas. Conhecia a Amazônia brasileira, peruana, venezuelana e colombiana, além de países europeus e asiáticos. Contou também que conheceu, conviveu e foi amigo de Negro Acácio, um dos comandantes das Farc (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia). Jacinto tinha até brevê de aviador e que tinha sido dono de um Cessna 210, uma aeronave que hoje, bem usada, vale cerca de 1,5 milhão de reais. E que ele mesmo, e só ele, pilotava o avião. Zúnica me contou que, numa das conversas que tiveram, Jacinto falou com propriedade sobre as Cruzadas, a inquisição, a vida monástica de Santo Antão e também sobre os grandes homens da humanidade, como Sakyamuni ou Siddhartha Gautama, o primeiro Buda. Esse cara, o Jacinto, que sabe tanto da vida e de tantas outras coisas, vivia nas ruas de São Paulo. O que o terá arrastado para lá? Zúnica não sabe. Jacinto se recusou a falar sobre isso. Mas ele deve ter sofrido um golpe e tanto. Como todos os outros trinta mil que vivem nas mesmas condições em São Paulo. Trinta mil! É como se mais que o dobro da população de uma cidade como Cabo Verde, por exemplo, vivesse nas ruas. E existiam muitos ‘Jacintos’ entre eles. Como um ex-lutador de vale-tudo que havia ganhado, e perdido, milhares de dólares nos ringues. Ou um marroquino formado em Artes na USP. E uma jovem, que ainda guardava resquícios de imensa beleza e que, no auge da vida, havia desfilado para grifes milionárias na São Paulo Fashion Week. Pessoas que foram de tal forma espancados pela vida que preferiram se deitar na vala comum dos marginalizados. Preferem o anonimato das ruas. Não têm mais nome, nem rosto, nem passado. E continuam vagando, disfarçados pelas máscaras obrigatórias ou se escondendo atrás de barbas mal cuidadas e grandes olheiras de eternas noites mal dormidas. Passam por nós como se fossem sombras. Daquilo que já foram um dia. Nem sonhar, sonham. Quando se disfarçou de mendigo e viveu com eles, Zúnica passou muitas noites em abrigos da prefeitura. Ele me explicou que os quartos eram divididos por até 80 pessoas por noite. E que era extremamente difícil dormir, por causa dos gemidos e lamentos. O sono dos moradores de rua é povoado por pesadelos. Até as boas lembranças são cruéis, porque evocam pessoas e situações que, provavelmente, nunca mais farão parte da vida deles. Talvez seja por isso que vagam sem destino. Porque perderam a mola mestra da vida. Aquilo que costumamos chamar de esperança.
Por hoje é isso. Semana que
vem tem mais. Até lá.