Publicado em 28/08/2020 - raul-dias-filho - Da Redação
Gosto muito de moda de viola. Desde criança me acostumei a ouvir na vitrola que papai tinha na ‘venda’ do São Bartolomeu. Pra quem não sabe, antigamente os pequenos empórios e mercearias eram chamados de ‘venda’. E na ‘venda’ do papai se vendia de tudo: açúcar, arroz e feijão a granel, vassouras, bombril, fumo de rolo, fubá, doces e bebidas, principalmente cachaça. Aos sábados e domingos a velha vitrola ficava ligada o tempo todo, tocando discos de duplas caipiras que faziam muito sucesso na época. Conto isso para mostrar que, desde sempre, nós, sul mineiros, gostamos de ouvir e cantar modas de viola. Existem até algumas músicas sertanejas que homenageiam cidades da região. Muzambinho, por exemplo, é citada na música ‘João Carreiro’. Como o nome sugere, a música conta a história de um carreiro que trabalha exaustivamente conduzindo um velho carro de boi e, nestas andanças, se apaixona por uma cabocla chamada Corina, tão bonita quanto a flor do alecrim. Muzambinho é citada quando o carreiro fala dos bois que puxam o carro. Cada um tem um nome:
“Pareia do cabeçalho, Beija frô e Muzambinho
Pareia de boi de guia, Fortaleza e Caboquinho
Na soquilha caminhava Riachão e Riachinho
Vamo simbora Sereno, pareia de Passarinho”
Outra cidade imortalizada numa moda de viola é Monte Belo, que aparece inclusive no título de uma música gravada por Tião Carreiro e Pardinho e que, regravada por várias outras duplas, continua fazendo sucesso até hoje: ‘Mineiro de Monte Belo’. O trecho diz assim:
“A berada do telhado é morada do cuitelo
Sanhaço tem pena verde, mora no pé de marmelo
No galho da laranjeira, sabiá peito amarelo
No braço dessa viola, mineiro de Monte Belo
Quando eu entro no catira, os meus pés são dois martelo”
Interessante que nenhuma das duas músicas foi escrita por artistas que nasceram ou viveram na região. ‘João Mineiro’ foi composta por Raul Torres, que nasceu em Botucatu, e ‘Mineiro de Monte Belo’ por Lourival do Santos, natural de Guaratinguetá. Eles estão entre os maiores compositores da história da música sertaneja. Lourival dos Santos, por exemplo, compôs mais de mil músicas. E isso sempre me intrigou: de onde vem tanta inspiração? Uma vez, maldosamente, um amigo me respondeu que compositor de moda de viola é capaz de matar a própria mãe só para ficar triste e ter inspiração. É que a maioria das letras fala de saudade. Da terra onde nasceu ou da mulher amada que se aninhou nos braços de outro. Mas, voltando ao assunto, a resposta sobre a tal inspiração me foi dada, duas vezes, pessoalmente, por dois grandes compositores da música sertaneja. O primeiro foi Jack, que conheci numa festa em Campinas. Quando fui apresentado a ele, fiquei igual você deve estar agora: Hã? Não fazia a mínima ideia de quem era. Pois Jack, que nasceu Anair de Castro Tolentino, é autor de ‘Caminheiro’, que certamente entra em qualquer lista das principais músicas sertanejas de todos os tempos. Se não conhece ou não se lembra, eu ajudo. ‘Caminheiro’ começa assim:
“Caminheiro que lá vai indo
Pro rumo da minha terra
Por favor, faça parada
Na casa branca da serra
Ali mora uma velhinha
Chorando um filho seu
Essa velha é minha mãe
E o seu filho sou eu
Vai, caminheiro
Leva esse recado meu...”
No tal recado, ele diz pra mãe cuidar bem das coisas dele e avisa que um dia, quando se formar, vai voltar para casa. Claro que perguntei a Jack como, quando e porque ele havia escrito aquela letra. Ele respondeu que foi em 1976, quando ele e um amigo com quem fazia dupla viajavam de carro para se apresentar num circo, numa cidade distante no interior de São Paulo. Jack ia no banco do passageiro quando, num trecho da estrada, percebeu um homem com uma trouxa nas costas caminhando pelo acostamento e disse ao amigo: “olha, um caminheiro... Pra onde será que ele vai?” O amigo não respondeu, mas ele ficou pensando naquilo. Então pegou um caderno e um lápis no porta luvas e começou a escrever. Quando chegaram no circo, algumas horas depois, a letra e a música já estavam prontas. É assim que nascem algumas obras primas: casualmente. ‘Garota de Ipanema’, por exemplo, talvez a música brasileira mais conhecida no mundo, nasceu numa mesa de bar, quando Vinicius de Moraes e Tom Jobim tomavam chopp em Ipanema e uma moça bonita e rebolativa passou por eles, a caminho da praia. Mas isso é outra história. Voltando de novo ao nosso assunto, a segunda vez que conheci um compositor de modas de viola também foi inesquecível. Numa tarde fria de inverno, em 1998, voltava para a redação em Campinas, onde trabalhava na época, quando o motorista me disse que João Pacífico estava fazendo uma palestra ali perto. Não pensei duas vezes e disse: ‘então toca pra lá’. No caminho, avisei a redação, por rádio, que estava indo fazer uma entrevista especial com João Pacífico. Claro que, no início, houve uma desconfiança, porque nunca nenhum deles havia ouvido aquele nome. Era compreensível, porque João Pacífico não era conhecido como cantor, embora cantasse as vezes. Ele era mesmo um compositor. Tido por muitos como o maior de todos os tempos, em qualidade e quantidade. Escreveu mais de mil e trezentas letras, entre elas algumas das principais obras primas da música caipira. São dele, em parceria com Raul Torres, clássicos como ‘Chico Mulato’ e ‘Cabocla Teresa’. A história de vida dele também é exemplar. João Baptista do Nascimento nasceu em Cordeirópolis, filho de uma ex escrava e de um maquinista. Sempre muito calmo, de fala mansa, sossegado e bem humorado, ganhou o apelido de João Pacífico. Durante toda a vida escreveu versos e canções mas como, na época, compositores ganhavam muito pouco pela obra, trabalhou como motorista particular para uma tradicional família paulistana até se aposentar. Era tão querido pela família que, quando se aposentou, em 1973, ganhou do patrão o Chevrolet Bel Air que havia dirigido por tantos anos. Pois bem, depois de devidamente ‘apresentado’ à redação, a pauta foi aprovada e lá fui eu ao encontro de João Pacífico. Ele já tinha 89 anos e impressionava pela lucidez e bom humor. Conversamos bastante e já no final da entrevista perguntei se ele tinha, entre todas as músicas, alguma que mais lhe agradava. Seo João disse que não, que as músicas, para ele, eram como filhos. Todos são queridos e igualmente amados. Mas, colocando a mão no meu braço, disse que tinha um versinho que gostava de declamar, e perguntou se eu queria ouvir. ‘Mas é claro’, respondi. E um dos maiores compositores da música caipira declamou só para mim, esse poema:
“Um fiozinho d’ água
Desviou de um riacho
Veio vindo serra abaixo
E passou no meu pomar
Encontrou uma pedra,
Ficou sua companheira
Brincaram de cachoeira
E aqui ficaram pra morar.
Hoje, da minha janela,
Eu contemplo a cachoeirinha
Que ficou minha vizinha
Desde que a vi nascer
Seu murmúrio doce
É um verdadeiro canto
É quem me serve de acalanto
Para eu adormecer”
Quando terminou, seo João pousou a mão em meu joelho, olhou para mim e perguntou: ‘Gostou?’ Eu estava emocionado demais para responder. Mas ele percebeu o quanto aquele momento havia sido marcante para mim. Tanto que me convidou para um brinde. E então, naquele fim de tarde, tive o segundo privilégio do dia: brindar, com uma boa dose de cachaça, com João Pacífico. Foi a última entrevista dele para a televisão. João Pacífico morreria alguns meses depois, no dia 30 de dezembro daquele ano. Para mim, deixou uma lembrança inesquecível. Para a música brasileira, assim como Raul Torres e Lourival dos Santos, deixou um legado imortal.
Por hoje é isso. Semana que vem tem mais. Até lá.
Raul Dias Filho - O autor é jornalista e repórter especial da Record TV